Memórias dramáticas de uma "terapia" sexual
Que está a acontecer com a difusão pública dos filmes? Como vão evoluir as tensões entre o mercado clássico das salas e as novas alternativas de "streaming"? O assunto é demasiado complexo para poder ser condensado em breves linhas. Além do mais, sendo global, possui configurações específicas para cada país.
Há quem pense (é o meu caso) que as possibilidades abertas pela Internet, cujo valor não está em causa, não justificam qualquer menorização do circuito das salas. Em boa verdade, tais possibilidades podem (e, a meu ver, devem) levar a pensar em modos de revalorização desse circuito, em particular não afastando determinado filmes da possibilidade de serem descobertos num grande ecrã. Mais do que isso: qual o poder comercial do "streaming" se se alienar o valor promocional dessa montra que são as salas?
Uma coisa é certa: o magnífico Boy Erased (à letra: Rapaz apagado) não passou pelas salas portuguesas e foi agora colocado no universo das plataformas digitais. E há qualquer coisa de bizarro e desconcertante, porventura absurdo, no facto de um filme com um elenco que integra Nicole Kidman e Russell Crowe (nomes inequivocamente populares, ambos "oscarizados") ser objeto deste tipo de secundarização. Porquê?
Seja como for, as singularidades do filme começam na sua fonte de inspiração. A saber: o livro de memórias de Garrard Conley (americano nascido no Arkansas, em 1984), também intitulado Boy Erased, em que evoca, precisamente, como superou todo um cruel processo de "apagamento" da sua identidade. Dito de outro modo: ele foi inscrito numa "terapia de conversão" da sua homossexualidade, atividade ainda legalizada em diversos estados dos EUA, visando a erradicação de um modo de ser que é "tratado" como uma aberração contrária às leis divinas.
Na sua agressividade emocional e intelectual, o "tratamento" a que sujeitam Conley (aliás, Jared, já que o filme não utiliza os nomes das figuras reais) tem qualquer coisa de filme de terror. O certo é que Boy Erased está longe de ser uma narrativa que tente "encaixar" em qualquer modelo prévio de cinema, nessa medida afirmando Joel Edgerton, realizador e intérprete da personagem do "educador sexual", como um cineasta de invulgar subtileza do olhar.
Boy Erased resulta um objeto tanto mais tocante quanto nunca desiste de dar a ver o factor humano como uma intricada textura de coisas luminosas e componentes dantescas. Lucas Hedges é admirável na interpretação desse jovem que, afinal, de acordo com a austera religiosidade familiar, começa por aceitar como experiência "natural" a sua integração no "refúgio" organizado para a "depuração" da homossexualidade dos jovens (lembremo-nos de Hedges em Manchester By the Sea, filme de 2016 que lhe valeu uma nomeação para o Oscar de melhor ator secundário).
E o mínimo que se pode dizer de Kidman e Crowe é que as suas composições nunca cedem a qualquer tipo de cliché, sabendo expor os impasses, contradições e revelações do comportamento dos próprios pais. Enfim, um belo filme que não está "num cinema perto de si", correndo o risco de se perder no anonimato mediático dos ecrãs que somos levados a consumir... Decididamente, é tempo de as principais entidades do mercado cinematográfico português começarem a reflectir sobre aquilo que (não) está a acontecer.
* * * * Muito bom