Memórias do outono ocidental

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Talvez coincida com a fundação da ONU o tema das memórias do outono ocidental. Tendo em vista o próprio conceito da ONU, Jacques Chevalier, por esse tempo seguindo com atenção, escreveu que "num mundo onde os pontos de apoio se diluem, onde as certezas enfraquecem, o Estado continuará, e sem dúvida por largo tempo, o princípio fundamental da integração das sociedades e o lugar privilegiado de formação da identidade coletiva" (in Le Nouvel État du Monde, La Découverte, Paris, 1999).

Por esse tempo todavia não parecia vigorar um conceito de Estado com vigente globalismo no planeta, o que os fundadores da ONU não ignoram, designadamente ao introduzirem a aristocratização do direito de veto, sendo vulgar no pensamento americano o conceito do fim da história para a nação indispensável. Muito mais acentuadamente, estudiosos como François Jullien valorizavam o tema do diálogo entre as culturas, agitando os preceitos do universal, uniforme, ao menos enriquecendo a capacidade de procurar as pessoas que hoje mostram a multiplicação das variedades, perdido para muitos o breve pensamento teihardiano.

A versão de que os ocidentais eram os grandes agressores dos tempos modernos, abriu um processo cuja inovação mais inquietante é a da guerra da covid-19, que foi assim considerada por organizações militares suficientemente sabedoras para qualificar o desastre, e para o enfrentar. Para os apostados na intervenção das diferentes culturas, etnias, história, e religiões, tal aspeto, na medida em que interessa construir a cooperação das próprias religiões, a informação multiplica-se, e tem-me parecido da maior exigência para a situação, já não apenas ocidental mas mundial.

É indispensável o livro do meu querido amigo o padre Anselmo Borges, professor em Coimbra, intitulado Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo (2017). No dia em que a imprensa mundial anuncia dificuldades entre os gestores católicos dos EUA e o atual presidente católico dos Estados Unidos, recordo o texto de Anselmo Borges: "Os dois princípios intercruzados, que têm de animar a todos, são: por um lado o amor, a bondade, e, por outro, a razão, a inteligência. A bondade sem inteligência não abre caminhos novos e pode inclusivamente causar imensos estragos irreparáveis; a inteligência sem a bondade pode tornar-se cruel e fazer um sem-número de vítimas. A síntese é: a razão sensível." Este conflito que pretende julgar e atingir o presidente católico dos EUA parece poder surgir sem ter em conta que a este crente não faltam os princípios, sem enfrentar uma mudança mundial, incluindo o risco de o seu passado adversário não parecer preocupado com a própria unidade do povo americano, e as exigências de recorrer à celeridade e sentido dos EUA, das grandezas passadas em crise, de a competição ser um novíssimo desafio, não à experiência de um passado a caminho do pântano, mas da sua nova realidade do humanismo integral.

A realidade portuguesa, que é parte histórica fundamental da ocidentalização do globo, leva os que se interessam pela validade da resposta do já ilustre Papa Francisco, e lembrar que foi ele quem elevou aos altares o histórico Frei Bartolomeu dos Mártires, regressado do Conselho de Trento, pelas terras transmontanas, à sua diocese. Na minha infância recordei na terra em que nasci a situação correspondente à memória que deixou e das encostas escalvadas, desertas e nuas, à beira de uma estrada, na qual o nosso poeta desse tempo, Guerra Junqueiro, ali viu "os pobres, que de pobres, são pobrezinhos". Mas o ilustre prelado que, em Trento, discutiu Lutero, teve famosa intervenção sobre a necessária intervenção na gestão da Igreja, nas exigências daquele ponto. A fórmula que recordam entre portugueses no mundo é eventualmente a então usada, mas não teria aqui presente. Mas o sentido global, em relação aos presentes tempos difíceis, talvez tenha orientado a subida aos altares. O ponto final espera pelo apoio do Pai Nosso. O que ajuda a esquecer que é o Ocidente que está em decadência, que a violenta crise europeia é parte de uma crise mundial sem precedente, e que os países como Portugal veem crescer a situação de Estados exógenos, exíguos, atingidos pela linha da pobreza que fez renascer o limes romano ao norte do Mediterrâneo. Pelo que não devem omitir ou esquecer o poder da voz contra a voz do poder que emerge, acima daquela linha, ignorando que, sem União, de modelo final ainda não definido, não é apenas a voz de cada Estado europeu, ou a voz da União anarquizada, é a voz do Ocidente que será pelo menos fortemente debilitada no globalismo ainda mal sabido da entrada neste século sem bússola.

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