Woody Allen chama à sua polémica autobiografia A Propósito de Nada, só que não é bem assim, afinal são 450 páginas que chegam às livrarias portuguesas na próxima quinta-feira e em que esse propósito não existe pois é sobre tudo o que lhe aconteceu na vida, mesmo que só ao fim de três centenas de páginas é que se chegue à parte mais tórrida e que tem chamuscado o realizador junto da opinião pública..Esta Autobiografia chega a Portugal após um percurso acidentado, desde as críticas dos movimentos feministas à recusa de várias editoras em a publicar, acrescendo uma enxurrada de críticas ao cineasta na imprensa de todo o mundo. Não será por acaso que, a dado momento, Woody Allen evoca o macarthismo que violentou Hollywood nos anos 1950 e que, no presente, é comparável à quase proibição de se falar no seu nome, ir ao cinema ver a sua arte cinematográfica e mesmo, no caso dos Estados Unidos, ter as estreias dos seus filmes, ou obrigando-o a filmar numa Europa mais liberal e sem linchamento popular. Por isso, escreve nesta autobiografia o seguinte: "Ao contrário de muitas pobres almas que foram destruídas pela inclusão na lista negra na era McCarthy, eu era menos frágil. Por um lado, não estava em risco de passar fome e, sendo escritor, produzia os meus projetos. Sou dado a sonhar acordado, em que normalmente sou a estrela, e agora era o protagonista na vida real de um drama sobre uma pessoa inocente falsamente acusada. Devo confessar que o dilema malicioso apelava às minhas fantasias de herói cinematográfico e, durante o processo, via-me como uma alma caluniada que triunfaria na última bobina. Claro que, ao contrário de Hollywood, não emergiu qualquer Jimmy Stewart ou Henry Fonda para aceitar o meu caso e corrigir os erros, mas na vida real houve quem se disponibilizasse e fosse suficientemente destemido para assumir uma posição de princípio. Alec Baldwin foi um dos poucos corajosos. Javier Bardem também foi muito franco e enfurecido por aquilo a que chamava um linchamento público. Blake Lively defendeu-me, arriscando os abusos das redes sociais. Scarlett Johansson defendeu-me em termos inequívocos.".Em causa estão as acusações de Mia Farrow, sua ex-companheira, e que o acusou de abusos à filha Dylan, além de condenar a relação com outra das filhas adotadas pelo casal, Soon-Yi, atualmente com 35 anos e com quem Woody Allen vive. Esse diário de acusações da atriz que protagonizou A Semente do Diabo tem direito a uma pilha de páginas que tentam explicar o que se passou - e passa - aos que acreditam na inocência do realizador, bem como aos que se divertem com os seus filmes há décadas e, porque não, para quem gosta de ler um livro repleto de episódios delirantes. E como nos tribunais nada foi provado até agora, o delírio tanto está nas histórias de uma vida como nas confusões conjugais desta Autobiografia.."Queda para jovens".Woody Allen faz questão de desmentir as bases de várias acusações, entre as quais a de namoros com jovens: "Muito se diria na imprensa, em anos posteriores, quanto à ideia de que eu tinha queda por raparigas jovens, mas a verdade não é essa. A minha primeira mulher tinha menos três anos do que eu. Tal como a segunda. Diane Keaton era 'de idade adequada', tal como Mia Farrow, com quem namorei 13 anos. Das muitas mulheres com quem me envolvi ao longo das décadas, quase nenhuma era muito mais nova do que eu.".Woody Allen sabe que essa parte da sua vida é um chamariz para esta Autobiografia, tanto que lá mais para a frente brinca com o leitor, dizendo que sabe que ele está à procura destes casos que o desfizeram enquanto cineasta e dos quais dificilmente se conseguirá livrar. Sossega o leitor ao fazer a promessa de que "essa história vem mais tarde e é longa", mas espera que "não seja a razão para ter comprado este livro"..É verdade que para quem chegou ao livro por essa razão, Woody Allen não deixará o leitor insatisfeito depois de o ter obrigado a saber muito da sua vida. Diga-se que o livro não tem um índice, nem títulos a abrir os capítulos, nem qualquer outra forma de se ir diretamente à parte onde está a sua versão de uma polémica tão violenta. Quando lá se chega, Woody Allen introduz a questão assim: "E agora, infelizmente, sou obrigado a regressar ao entediante tema das falsas acusações. A culpa não é minha, malta. Quem diria que ela [Mia Farrow] era tão vingativa? Mia faz da sua raiva contra Soon-Yi e contra mim o centro da vida de todos, alimentando a raiva e reforçando constantemente a ideia, perante Dylan, de que eu abusei dela.".Entre os longos pormenores da relação com Mia Farrow está a descrição de como se conheceram, começando por perguntar: "Em retrospetiva, deveria ter visto os sinais de perigo? Suponho que sim, mas quando estamos a namorar esta mulher de sonho, ainda que vejamos um qualquer sinal, tendemos a olhar para o outro lado. E lembrem-se, eu não era o tipo mais perspicaz, em especial no que diz respeito a questões que envolvessem o cupido.".Muitas páginas antes, já Woody Allen explicara como conhecera o seu primeiro grande amor, Stacey, ou o deslumbramento por Diane Keaton. Mas como não se ficara por elas, é Mia Farrow que regressa: "Vendo bem, os sinais existiam, espaçados por poucos metros, mas a natureza fornece-nos um mecanismo de negação. Por exemplo: pouco depois de termos começado a namorar, Mia anunciou que tinha comprado uma casa de campo em Connecticut. Pressenti que os nossos gostos absolutamente divergentes de como e onde viver e passar o tempo acabariam por ser um problema e optei por ignorá-lo. Um segundo sinal de aviso ocorreu passado pouquíssimo tempo de termos começado a namorar; Mia virou-se para mim enquanto estávamos a ver um filme e disse: 'Quero ter um bebé teu.' Fiquei chocado, mas considerei que era um atalho gracioso.".Ao recordar certas situações, Allen não deixa de introduzir algumas piadas, mas a antecipação da tragédia salta à vista: "Atribuí tudo à dramatização excessiva. Afinal de contas, ela era uma atriz e bastante dada a representar cenas. Não muito depois disso, num restaurante chinês, sugeriu subitamente que nos casássemos. A sugestão apanhou-me a meio de um crepe e pensei que ela talvez não tivesse posto as lentes de contacto e me tivesse confundido com outra pessoa. Quando me apercebi de que estava a falar a sério, disse-lhe que, além de estarmos a sair há pouco tempo, via o casamento como um ritual desnecessário. Como é óbvio, ficou visivelmente irritada por ouvir a minha recusa. Retirou a oferta em tom petulante e fez alguns comentários sobre eu estragar as coisas.".Ao evocar a relação com Mia Farrow, Allen garante ao leitor que "irá ficar chocado" como tudo aconteceu e também faz acusações: "Nada sabia sobre como tratava os filhos, os adotados em contraste com os biológicos. Mia tinha grandes cuidados em escondê-lo de mim, tal como do mundo. Mais um sinal de aviso: uma proximidade não natural com o filho Fletcher. Demasiado próxima.".Uma das preocupações de Woody Allen é distanciar-se dos rótulos que lhe estão colados. Primeiro, o de ser tão volúvel como os protagonistas que interpreta nos filmes. Daí que esclareça: "Escrevi muitos papéis para mulheres, incluindo alguns razoavelmente suculentos. Na realidade, para um tipo que já teve a sua quota-parte de cólera dos fanáticos do #MeToo, o meu registo com o sexo oposto até não é nada mau. A minha assessora de imprensa realçou certa vez que em 50 anos a fazer filmes, trabalhando com centenas de atrizes, concedi 106 papéis principais femininos, que garantiram às atrizes 62 nomeações para prémios, e nunca houve a mais pequena sugestão de ter sido impróprio com qualquer uma delas.".Em tom de desilusão, mas imaginamos a dizê-lo como num dos seus filmes, confessa que "fiquei desiludido com a reação do The New York Times" e justifica que foi "por ter crescido a adorar o jornal, ansiando por lê-lo ao pequeno-almoço todas as manhãs e sentindo-me orgulhoso pela sua coragem humana e racional"..A Propósito de Nada não é só sobre a polémica que remeteu nos últimos tempos Woody Allen à penumbra e ao escândalo, antes uma divertida comédia sobre como o próprio se vê desde que nasceu e até há bem pouco tempo. Em tom de modéstia, inicia as memórias afirmando que "talvez o leitor achasse mais interessante ler um pouco acerca dos meus pais do que sobre mim" e conta como foram as vidas do pai, uma delas em que quase morreu afogado na II Guerra Mundial, e que esteve "perto de nunca chegar a nascer"; ou defende a mãe, que era uma mulher inteligente, trabalhadora e abnegada, mas "não era fisicamente cativante e mais parecida com Groucho Marx"..Recorda que nasceu Allan Stewart Konigsberg e não Woody Allen, está registado a 1 de dezembro de 1935 mas na verdade nasceu um dia antes porque os "meus pais empurraram a data para que eu pudesse começar a vida num dia um". Que os seus heróis literários eram simplórios, como Batman, Super-Homem, Pato Donald ou Bugs Bunny. E quer espantar, como faz à página 385, em que confessa que "a única outra ocupação que alguma vez me interessou foi a vida de crime, um jogador, um vigarista, um burlão"..Puxa ao sentimento ao questionar-se sobre o seu maior arrependimento: "Apenas o facto de ter dado milhões para fazer filmes, assumir o controlo artístico total e nunca ter feito um grande filme." E voltando aos seus jogos de palavras, acrescenta: "Aquilo que mais invejo? A escrita de Um Elétrico Chamado Desejo. Aquilo que menos invejo? Saltitar num prado. Se pudesse refazer a minha vida, faria algo diferente? Não compraria aquele milagroso cortador de vegetais que um tipo apresentou na televisão. E a sério, não tem interesse no legado? Já fui citado antes sobre isto, e fiquemos pelo seguinte: em vez de viver nos corações e nas mentes do público, prefiro viver no meu apartamento.".Uma pilha de histórias.A Woody Allen não faltam histórias sobre o seu caráter, personalidade e biografia. E o livro está recheado delas, que tornam ainda A Propósito de Nada mais impedível- Seguem-se alguns exemplos:."É impressionante a quantidade de vezes em que me descrevem como 'um intelectual'. Esta é uma noção tão falsa quanto a do monstro do Lago Ness, dado que não tenho na cabeça nem um só neurónio intelectual. Iletrado e desinteressante em tudo o que diz respeito à educação, cresci sendo o protótipo do preguiçoso que se senta em frente à televisão, de cerveja na mão, com um jogo de futebol aos berros, a página central da Playboy presa à parede com fita-cola, um bárbaro que exibe os casacos de tweed com remendos nos cotovelos a la professor de Oxford."."Eu via todos os filmes que Hollywood lançava. Todas as grandes produções, todos os filmes de série B. Eu sabia quem entrava nos filmes, reconhecia-os, os intervenientes mais desconhecidos, os atores secundários, reconhecia as músicas, pois conhecia todas as músicas mais populares, dado que Rita e eu nos sentávamos e ouvíamos rádio juntos incessantemente. Graças à minha prima Rita, fui apresentado ao cinema, às estrelas de cinema, à Hollywood da moralidade patriótica e aos seus fins milagrosos."."Quando me perguntam que personagem dos meus filmes se parece mais comigo no ecrã, basta olhar para Cecilia em A Rosa Púrpura do Cairo."."Quando Que Há de Novo, Gatinha? ficou pronto, preparei-me para regressar a casa. Comprei uma mala de pele de crocodilo da Hermès para a minha mãe, pela qual paguei uma quantia criminosa - ela nunca a usou, tendo-a antes guardado num cofre no Dime Savings Bank, em Brooklyn. Depois chegou a notícia de que, em vez de ir diretamente para casa, iria ser levado num jato privado para Washington DC, onde participaria no grande espetáculo inaugural da campanha de Lyndon Johnson. Estávamos em Janeiro de 1965. Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn deveriam atuar, juntamente com Barbra Streisand, Nichols and May, Alfred Hitchcock, Harry Belafonte, Joan Baez, Carol Burnett, Johnny Carson, e eu. Regressei num avião enorme, cujos únicos três passageiros eram Nureyev, Margot Fonteyn e eu."."Então, depois de tantos elogios, estamos sentados no teatro à espera da audição de Diane Keaton. E eis que surge uma jovem alta e magra. Vou dizê-lo desta forma: se Huckleberry Finn fosse uma mulher muito bonita, seria quem apareceu no palco. Keaton, que pede desculpas por tudo e mais alguma coisa, uma saloia de Orange County, frequentadora de feiras da ladra e adepta de sandes de atum com queijo, uma imigrante em Manhattan que trabalha num bengaleiro, que tinha trabalhado na loja de doces de um cinema em Orange County e que fora despedida por estar constantemente a comê-los.".A Propósito de Nada - Autobiografia.Woody Allen.Edições 70.Nas livrarias dia 23