O esplendor do musical "made in USA" volta a marcar a atualidade com a nova versão de West Side Story, dirigida por Steven Spielberg, a estrear nos ecrãs de todo o mundo ao longo do mês de dezembro (dia 8, em Portugal). Há um misto de celebração e mágoa a envolver o acontecimento: um dos mestres do musical, Stephen Sondheim, autor dos versos de West Side Story, faleceu há pouco mais de uma semana, a 26 de novembro, contava 91 anos - como o próprio Spielberg revelou na ante-estreia do filme, ocorrida três dias mais tarde, no Lincoln Center, em Nova Iorque, Sondheim ainda acompanhou o projeto, tendo estado presente em todas as sessões de gravação das canções..Dir-se-ia que deparamos com o encerramento simbólico de um ciclo, não apenas do género musical, mas da própria história de Hollywood e do "entertainment". Isto porque foi em 1961 que os ecrãs das salas escuras acolheram o primeiro West Side Story, assinado por Robert Wise e Jerome Robbins..Seis décadas depois, a herança dessa obra-prima projeta-nos nas memórias de um tempo em que, escusado será dizê-lo, a paisagem de Hollywood se distinguia por uma conjugação industrial e artística profundamente diferente da atual. E não apenas porque não eram os filmes de super-heróis que dominavam as opções dos grandes estúdios. Em especial porque, apesar de tudo, essas opções ainda eram balizadas pelas regras de alguns géneros clássicos: a comédia, o melodrama, o "western" e, claro, o musical..Importa não esquecer que a história de West Side Story é, antes de tudo o mais, uma odisseia teatral. Com música de Leonard Bernstein (1918-1990), o musical teve a sua estreia no Winter Garden Theatre, a 26 de setembro de 1957, com direção e coreografia de Jerome Robbins - manteve-se em cartaz até 27 de junho de 1959, perfazendo 732 representações. A estreia em Londres, no West End, aconteceria em finais de 1958. Antes mesmo da passagem ao cinema, West Side Story transformou-se numa referência incontornável da Broadway. Ao longo das décadas, os seus diversos "revivals" são reveladores dessa condição - a versão mais recente surgiu em dezembro de 2019, no Broadway Theatre, tendo sido interrompida em março de 2020 devido à pandemia do covid-19..Como Sondheim explicou em diversas entrevistas que deu ao longo dos anos, a sua condição de letrista para a música de Bernstein não era, à partida, um trabalho que o seduzisse. Na altura, depois da estreia do seu Saturday Night, ainda antes de fazer 25 anos, o seu objetivo passava pela consolidação de uma carreira que lhe permitisse ser o autor da música e das letras dos espetáculos que ele próprio concebesse. Acabou por aceitar, seguindo o conselho do seu mestre e mentor, Oscar Hammerstein II, ligado a grandes referências do musical que Hollywood adaptara (como Oklahoma! ou O Rei e Eu e, mais tarde, Música no Coração): West Side Story seria, afinal, uma oportunidade de participar numa produção de ambição e meios pouco comuns que, para mais, oferecia a garantia de uma invulgar conjugação de talentos..A ideia fundadora de West Side Story surgira em 1949 e tinha tanto de tradicional como de desafiante. Robbins, o primeiro encenador, esteve envolvido desde o começo, a par de Bernstein e Arthur Laurents, autor do "argumento" ("book musical", de acordo com a designação usada no meio teatral). Tratava-se de reinventar a tragédia amorosa de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, agora num bairro de Nova Iorque, mais exatamente no Lower East Side, de Manhattan - o primeiro título do projeto foi mesmo East Side Story..O cenário e o título mudaram quando ficou definido que o novo Romeu e a nova Julieta se chamariam Tony e Maria, habitando o Upper West Side de Nova Iorque, zona então sujeita a uma radical transformação urbana, implicando a recolocação de muitos do seus habitantes. Mais do que isso, as "famílias" rivais seriam os Jets (jovens brancos) e os Sharks (porto-riquenhos), isto é, os gangs ligados às raízes dos protagonistas: Tony é um ex-membro dos Jets que acabou de cumprir uma pena de prisão; Maria é irmã do líder dos Sharks..Estava-se perante uma verdadeira revolução temática e estética. A partitura de Bernstein terá sido a principal bandeira de West Side Story, integrando matrizes obviamente ligadas à tradição do musical (teatral e cinematográfico), ao mesmo aceitando a contaminação de universos muito variados, incluindo o jazz e os ritmos latinos - West Side Story é mesmo um "parente" próximo da opereta Candide, inspirada em Voltaire, composta em paralelo por Bernstein e estreada em 1956. Além do mais, as convulsões vividas por Tony e Maria, ainda que relançando o impulso trágico de Shakespeare, ecoavam as muitas transformações por que estavam a passar as vidas dos jovens - e o próprio conceito de "juventude" - ao longo da década de 1950..O modelo principal de tais transformações era cinematográfico. A saber: James Dean. Através de dois filmes emblemáticos de 1955 - A Leste do Paraíso, de Elia Kazan, e Fúria de Viver, de Nicholas Ray -, Dean definira a personagem, de uma só vez histórica e mítica, do jovem subitamente desligado dos valores tradicionais da família, transformando-se no frágil e fascinante "rebelde sem causa" que o filme de Ray identificava no título original (Rebel Without a Cause). A morte prematura de Dean, ainda em 1955, contava 24 anos, quando apenas A Leste do Paraíso tinha chegado às salas, conferiu-lhe uma dimensão lendária que, como bem sabemos, persiste nos nossos dias..Com chancela da United Artists, a adaptação cinematográfica de West Side Story foi organizada em direta ligação com o show da Broadway. Altamente elogiado pela encenação de palco, Robbins foi convidado a refazer as suas espetaculares coreografias - o seu contributo para os resultados finais seria decisivo, levando o próprio Robert Wise a considerar que a realização devia ser assinada pelos dois..Ao contrário do que acontece nos nossos dias, o musical continuava a ser uma referência forte no imaginário dos espetadores. Paradoxalmente, pode dizer-se que a versão cinematográfica de West Side Story surgiu numa "terra de ninguém" de Hollywood. De facto, a principal "escola" de musicais, isto é, a unidade de produção dirigida por Arthur Fred na Metro Golden Mayer, já não tinha o peso dos tempos heroicos de Serenata à Chuva (1952) - Gigi (1958) ficou como a sua derradeira grande produção. Ao mesmo tempo, o modelo emergente do espetáculo cinematográfico era a "superprodução" - a partir de A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean -, apostando na grandiosidade de meios e ecrãs para fazer frente à concorrência crescente da televisão..West Side Story surgia, assim, em termos industriais, como um objeto relativamente solitário. Procurando ligar o musical a um peculiar realismo cenográfico, a própria opção de sair da segurança do estúdio para rodar alguma cenas em diversos locais de Nova Iorque, não sendo inédita (Stanley Donen e Gene Kelly já o tinham feito, em 1949, para Um Dia em Nova Iorque), provocou algum atraso nas filmagens, fragilizando a posição de Robbins, "acusado" de insistir em coreografias demasiado complicadas..O próprio par central estava longe de ser uma inequívoca garantia comercial. No papel de Tony, Richard Beymer era um nome relativamente conhecido, mas não possuía estatuto de estrela (três décadas mais tarde, teria uma visibi- lidade bem diferente como intérprete da personagem de Ben Horne na série Twin Peaks, de David Lynch). Quanto a Natalie Wood, como Maria, a sua celebridade era ainda a de um ícone juvenil, mesmo se já tinha surgido em títulos tão importantes como o já citado Fúria de Viver ou A Desaparecida (1956), de John Ford; para ela, 1961 seria um ano de espetacular reconversão da carreira, uma vez que, além de West Side Story, surgiu também noutro filme prodigioso, Esplendor na Relva, de Elia Kazan, contracenando com o estreante Warren Beatty..Como o filme de Spielberg poderá demonstrar, a herança de West Side Story está longe de se reduzir a um aparato banalmente nostálgico. Refazendo e reinventando as matrizes do musical clássico, o filme de Wise/Robbins emergiu no interior de uma dinâmica de profundas transformações do cinema americano, das estruturas de produção aos modelos narrativos. Afinal de contas, 1961 é um ano pontuado por títulos de importantes ressonâncias simbólicas. Lembremos três casos exemplares: Too Late Blues/Prisioneiros da Noite, em que John Cassavetes redescobria o melodrama em íntima relação com o jazz; The Deadly Companions/Companheiros da Morte, primeira realização de Sam Peckin, anunciando a dramática reconversão crítica das histórias do velho Oeste; enfim, The Misfits/Os Inadaptados, escrito por Arthur Miller e dirigido por John Huston, derradeiro filme de Marilyn Monroe..Contrariando o lugar-comum segundo o qual Hollywood tende a menorizar as suas produções mais inovadoras, West Side Story foi o título dominante nos Óscares de 1961, atribuídos em cerimónia realizada no Santa Monica Civic Auditorium, a 9 de abril de 1962: o filme obteve dez estatuetas douradas, incluindo a de melhor filme do ano e melhor realização - foi a primeira vez que o Óscar de realização consagrou duas pessoas (proeza que só se repetiu em 2008, com a vitória dos irmãos Coen por Este País Não É para Velhos). Aliás, a história contraria também o cliché segundo o qual os Óscares não dão atenção aos sucessos comerciais: em 1961, o líder destacado das bilheteiras foi West Side Story..dnot@dn.pt