Memórias de Greenaway, Thurston Moore & etc.
Eis uma lista curiosa: A Caça (Manoel de Oliveira, 1963), Night on Earth (Jim Jarmusch, 1991), Peel (Jane Campion, 1982), Soigne ton Gauche (Jacques Tati, 1936), The Debt (Bruno de Almeida, 1993)... Que liga estes títulos? Pois bem, o facto de terem integrado a programação da primeira edição do Curtas Vila do Conde, entre 16 e 20 de junho de 1993 - ainda com a designação Festival Internacional de Curtas-Metragens.
Na sua singela linearidade, a memória de tais títulos ajuda-nos a enunciar dois ou três princípios fundamentais do festival que, por estes dias, celebra a sua 30ª edição: primeiro, uma dominante de curtas-metragens que nunca menosprezou a coexistência com as longas, muitas vezes propondo sugestivos cruzamentos temáticos e narrativos; depois, a coexistência de muitas novidades com a amostragem de títulos mais ou menos "antigos", valorizando todas as formas de memória cinéfila; enfim, uma atenção militante à variedade da produção portuguesa.
Para cada espectador do Curtas haverá, naturalmente, momentos emblemáticos na história do festival. Por mim, citaria de imediato dois desses momentos: o encontro com Peter Greenaway, em 1996, além do mais com o privilégio suplementar de o ouvir dissecar o seu próprio trabalho através de um elaborado enquadramento estético e filosófico; e o espantoso concerto de Thurston Moore, a solo, em 2019, "acompanhando" algumas curtas de Maya Deren, figura lendária das vanguardas americanas das décadas de 1940-50.
Tudo isto, entenda-se, reflecte uma estratégia de diversificação e crescimento internacional cuja eloquência está bem expressa no número de títulos que se inscreveram na edição deste ano: mais de cinco mil, provenientes de 123 países. Aliás, a partir de 2021, o Curtas consolidou esse estatuto internacional com a sua integração, pela Academia de Hollywood, na "Oscar Qualifying Film Festival List"; na prática, isto significa que os vencedores das duas principais secções (nacional e internacional) são automaticamente elegíveis para consideração nas categorias de melhor curta de animação/ficção, mesmo quando não foram difundidos no circuito comercial dos EUA.
Claro que a exuberância de todos estes dados não pode, nem deve, ser confundida com um qualquer rótulo automático de "qualidade" para todos os filmes. Desde logo porque, como é inevitável (e salutar) cada filme não existe num espaço cultural abstracto, suscitando sempre diferentes leituras e juízos de valor. Depois, porque o mérito de um festival como o Curtas Vila do Conde decorre, no essencial, da capacidade de criar uma sedutora montra de títulos - ainda a crescer em quantidade e variedade - que, além do mais, implicitamente, nos remete para uma "velha" pergunta. A saber: que faz o mercado "tradicional" para dar seguimento às revelações dessa montra? Ou ainda: que fazem, podem fazer ou querem fazer os agentes desse mercado para que as dinâmicas deste festival (e mais alguns outros) transcenda os limites de um circuito "especializado"? São questões que, obviamente, apelam a uma política cultural de âmbito nacional que, salvo melhor opinião, continua adiada.
dnot@dn.pt