Mélenchon: das buscas em direto no Facebook à polémica com o sotaque de Toulouse
Suspeitas de alegadas irregularidades nas contas da campanha da França Insubmissa (esquerda), seguidas de buscas ao domicílio do líder do partido, Jean-Luc Mélenchon, transmitidas em direto no Facebook pelo próprio. Denúncias de uma operação da "polícia política" para intimidar, seguidas de acusações contra a justiça e os media e um vídeo que causou polémica no qual ridiculariza o sotaque de uma jornalista. Um caso que pode sair caro a Mélenchon, cuja popularidade está em queda.
Mélenchon, de 67 anos e quase 30 de vida política, conquistou 20% dos votos na primeira volta das presidenciais francesas em 2017. Segundo o barómetro LCI/Opinion Way, apenas 22% dos inquiridos estão satisfeitos com o trabalho do deputado eleito pelo departamento Bouches-du-Rhône, o que representa uma queda de sete pontos percentuais no espaço de um mês. A mesma queda na sondagem Ipsos, para 23% de opiniões favoráveis em relação ao líder da França Insubmissa.
Por seu lado, 64% dos franceses disseram-se "chocados" com a atitude de Mélenchon durante as buscas, segundo uma sondagem Elabe para a BFMTV. Números que podem ser preocupantes tendo em conta os objetivos eleitorais nas europeias, em maio de 2019, mesmo se o responsável de comunicação de dados, Antoine Léaument, tenha anunciado que o partido recebeu um recorde de 2300 novos pedidos de adesão numa semana.
"Não queremos continuar com a novela durante semanas", disse o diretor da campanha e um dos cabeça de lista às europeias, Manuel Bompard: "Começámos a pedir que as coisas avancem", disse à AFP, indicando que a solução é voltar a pôr Mélenchon no meio do povo.
Mas o que é que aconteceu na última semana para afetar a popularidade de Mélenchon?
As contas de campanha de Mélenchon há muito que são tema de conversa em França. Em fevereiro, mais de um mês depois da demissão por "desentendimentos sérios" de um dos dois investigadores responsáveis pela verificação das contas do candidato da França Insubmissa, a Comissão Nacional de Contas de Campanha e de Financiamento Político deu-lhes luz verde (como às de todos os outros candidatos).
Contudo, noticiou então o Le Monde, no caso de Mélenchon houve uma retificação no valor de 434 939 euros - um valor muito aquém dos 1,5 milhões que um dos investigadores alegava que não deviam ser reembolsados pelo Estado ao candidato, num total de 10,7 milhões de despesas totais (muito menos que outras campanhas, a de Macron, por exemplo, custou 16,7 milhões).
Segundo o jornal francês, teriam sido encontradas várias irregularidades, incluindo sobrefaturação e despesas mal justificadas. Algumas das despesas que chamaram a atenção foram para a associação A Era do Povo, criada em finais de 2015 (na véspera do início da campanha) e liderada por próximos de Mélenchon, que faturou 440 027 euros de "prestações intelectuais" e "materiais" ao candidato, tendo alugado material vídeo e informático aos comícios e organizado os eventos. Um valor que parecia muito elevado face ao normalmente praticado.
Por outro lado, mais de 11% do orçamento de campanha terá sido para pagar uma sociedade: Mediascop, criada e liderada por Sophia Chikirou, a diretora de comunicação de campanha de Mélenchon, de acordo com a investigação da Franceinfo. No total, faturou quase 1,2 milhões de euros. Entre os gastos estão alguns que terão chamado a atenção das autoridades: fazer a legendagem de vídeos por 200 euros por minuto, quando as empresas do setor cobram apenas 15 euros, ou cobrar 250 euros por publicar na Internet o registo de um discurso, algo que não leva mais do que dez minutos.
A questão das irregularidades nas contas de campanha foi apenas um dos processo que levou as autoridades francesas a efetuarem buscas em vários locais ligados à França Insubmissa, incluindo a casa do próprio Mélenchon, na terça-feira, dia 16 de outubro.
Buscas que o próprio filmou e partilhou em direto no seu Facebook, denunciando uma "enorme operação da polícia política" por "intimidar e amedrontar", reiterando inúmeras vezes que as suas contas foram aprovadas, ao contrário das de Macron - foi aberto um inquérito preliminar sobre um possível financiamento ilegal.
Por lei, não há nada que impeça Mélenchon de filmar e partilhar as imagens das buscas, mas algum dos polícias ou procuradores que são filmados (a maioria dos casos estão longe, mas há alguns que podem ser identificados), podem apresentar queixa por violação do direito à imagem.
Mélenchon diz nos vídeos que não tem medo, apela aos protestos frente à sede do partido, lembra que é um líder da oposição e que a polícia está a ficar com todos os computadores e a ter acesso a informação confidencial. E exige que se façam buscas a todos os partidos: "Porque é que eu sou alvo de buscas e não o senhor Macron?"
O outro processo contra Mélenchon diz respeito à acusação de que o seu partido usou alegadamente fundos europeus destinados a pagar a quatro assistentes parlamentares no Parlamento Europeu, em Bruxelas, para cobrir os salários de funcionários que trabalham na realidade em França. Mélenchon foi eurodeputado entre 2009 e 2017.
O inquérito começou com as suspeitas de que o mesmo teria sido feito pela líder da Reunião Nacional (ex-Frente Nacional, extrema-direita), Marine Le Pen, alargando-se depois também a outros partidos. O presidente do MoDem, François Bayrou, demitiu-se a 21 de junho de 2017 do cargo de ministro da Justiça após a abertura de um inquérito sobre os alegados empregos fictícios no Parlamento Europeu.
Num dos vídeos, Mélenchon discute com um procurador que lhe tocou. "Não me toque, senhor, você não tem direito de me tocar. Eu sou um deputado [e volta a colocar a faixa de deputado, com a qual já aparecia noutros vídeos]", indica. "Em democracia, um deputado é intocável", reitera.
Mélenchon reagiu com raiva às buscas à sua casa e à sede do partido, gritando com os polícias que não o deixavam entrar: "A República sou eu, sou eu que sou deputado" ou "Toque-me, para ver", segundo vídeos divulgados no programa Quotidien, da TMC.
O líder da França Insubmissa admitiu no dia seguinte que as coisas "ficaram quentes", mas disse não se arrepender de nada. Contudo, depois desse dia, é investigado por alegadas "ameaças e atos de intimidação contra autoridades judiciais" e "violência contra pessoas que cumpriam o seu dever público". A França Insubmissa reagiu, apresentando queixa por violência policial.
Na quinta-feira, Mélenchon esteve cinco horas a responder às questões da procuradoria anticorrupção.
Questionado nos corredores do Parlamento francês em relação às buscas, Mélenchon fica debaixo de fogo nas redes sociais depois de alegadamente gozar com o sotaque de uma jornalista da France 3, de Toulouse. "O que é que isso quer dizer?", pergunta imitando o sotaque. "Alguém tem uma questão formulada em francês?", refere.
Os jornalistas da redação saem em defesa da jornalista, Veronique Gaurel, denunciando uma "atitude intolerável" de Mélenchon. E o tema chegou a ser debatido no hemiciclo, onde uma deputada do La République en Marche, do presidente Emmanuel Macron, apresentou um projeto de lei para considerar como discriminação gozar com o sotaque de alguém. "Glottophobia" foi a palavra recentemente inventada por um linguista francês para descrever a discriminação baseada na pronúncia ou tom de voz.
Mas os ataques aos jornalistas não ficariam por aí, especialmente depois das revelações da equipa de investigação da Franceinfo, na Radio France, que se debruçou sobre a Mediascop e Chikirou. Numa conferência de imprensa, onde também pediu desculpas a Gaurel por ter feito pouco dela, Mélenchon qualifica a Radio France de "rádio do Estado", falando numa "operação teleguiada pelo poder político" contra si.
Mais tarde, acusa os jornalistas de serem "mentirosos e trapaceiros" - com a Radio France a anunciar entretanto que vai apresentar queixa contra ele - ainda antes de lançar outro ataque contra os media, depois de a Mediapart revelar as primeiras descobertas sobre as buscas à casa de Mélenchon.
O jornal online de investigação (criado por um ex-chefe de redação do Le Monde, Edwy Plenel) revela que, ao entrar em casa do líder da Frente Insubmissa, às 7.00, os investigadores encontraram Chikirou, ex-diretora de campanha, alegando que ambos têm uma "relação de longa data" que, segundo as suas fontes, será "extraprofissional".
Mélenchon reagiu num texto no Facebook: "No estado civil e nos impostos, sou celibatário. E até este artigo, acreditava que era o único autor da minha vida privada." No dia seguinte, num vídeo, reitera "ela não é a minha companheira", precisando contudo que não tem intenção de explicar a natureza da sua relação com ela, reiterando que ela é uma "excelente profissional" e que está a ser vítima de "misoginia". Justifica a sua presença na sua casa tão cedo pelo facto de ter um quarto no qual dormem os seus colaboradores quando ficam a trabalhar até tarde com ele.
Não é a primeira vez que Mélenchon ataca os media. Em fevereiro, escreveu no seu blogue que "o ódio dos media e daqueles que os alimentam é justo e saudável", reiterando que ele "não nos deve impedir de refletir e pensar sobre o nosso relacionamento com eles como uma questão a tratar racionalmente nos termos de um combate". E acrescentava: "Muitos amigos ainda não compreenderam que não temos outro adversário concreto que o 'partido mediático'. Só ele combate no terreno, inoculando todos os dias a droga nos cérebros", escreveu.
O comportamento de Mélenchon durante as buscas, foi criticado pelo primeiro-ministro francês, Édouard Philippe, que se disse "chocado" com a "grande violência" contra a polícia nos vídeos que foram divulgados. As críticas surgem também do La République en Marche, de Macron, e dos Republicanos (oposição de direita), mas também dos socialistas. O líder do França Insubmissa pertenceu ao Partido Socialista de 1977 a 2008, tendo chegado a ser ministro do Ensino Profissional de Lionel Jospin. Mas, nas presidenciais, teve quase mais cinco milhões de votos que o socialista Benoît Hamon.
Entre os críticos socialista, esteve o ex-presidente François Hollande: "Jean-Luc Mélenchon é vítima de si próprio", da sua "violência verbal" e das suas "provocações", não de um "complô da justiça", indicou Hollande, num evento de apresentação do seu livro, em Amiens.
Pierre Moscovici, ex-ministro francês e atual comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, foi mais longe: "Ele está a comportar-se como os populistas que praticam uma democracia iliberal. O que eles está a fazer à imprensa, ao sistema judiciário, não é muito diferente do que acontece com [Viktor] Orbán ou [Jaroslaw] Kaczynski", indicou, referindo-se ao primeiro-ministro húngaro e ao líder do partido Lei e Justiça, no poder na Polónia, e por muitos considerado o líder de facto do país.
Por outro lado, Mélenchon recebeu também várias palavras de apoio da parte de parceiros e aliados internacionais: incluindo em Portugal. "O que se passou hoje em França é indigno de um Estado de Direito. A nossa solidariedade com Mélenchon", escreveu (a última parte em francês) a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, no Twitter, partilhando a mensagem da eurodeputada Marisa Matias. "A nossa solidariedade com os camaradas insubmissos! O procedimento utilizado pelas autoridades francesas e a escolha do momento político não são isentas e de desconfiança nem dignas de um Estado de direito".
Em Espanha, Pablo Iglesias, líder do Podemos (outro dos partidos da plataforma "Agora, o Povo", tendo em vista as europeias), também reagiu no Twitter: "O dia em que Macron responde à crise do seu governo [buscas decorreram no mesmo dia em que o presidente francês remodelou o executivo], a polícia apresenta-se na casa de Mélenchon, líder da oposição parlamentar. Nunca visto na Europa. Todo o meu apoio aos camaradas insubmissos."
Mas o apoio não chegou apenas de aliados. Marine Le Pen também criticou o processo contra Mélenchon, acusando Macron de violação da separação de poderes. "Através do procedimentos judiciais, o poder aspira aos dados dos dois grandes partidos da oposição, que são a RN e a França Insubmissa", disse numa entrevista ao canal LCI, reforçando. "O objetivo destes procedimentos judiciais não é arruinar um partido da oposição e impedir que o seu líder concorra às eleições?