Melancolia sobre rodas
Na penumbra de um quarto, com a luz da manhã de Tóquio a insinuar-se timidamente na janela, vê-se a silhueta de uma mulher. Ela está ainda na cama, nua, enquanto conta uma história ao marido - a história de uma adolescente e da sua secreta intrusão na casa de um rapaz por quem se sente obcecada. Sem outros indícios para além da naturalidade com que essa narração acontece (hipnótica para o espectador), percebe-se que estamos perante um ritual íntimo entre os dois; como um sussurro de inspiração que vem depois do sexo e deixa uma nota lânguida de tristeza. Ficamos a saber mais tarde que ela é argumentista e ele ator e encenador. Mas antes dos pormenores importa guardar a imagem desta primorosa sequência de abertura de Drive My Car. Nela se manifesta a delicadeza do próprio filme, a sua leitura dos corpos no mistério de um qualquer lusco-fusco.
O momento que descrevemos não está no conto homónimo de Murakami que Ryûsuke Hamaguchi adaptou do livro Homens sem Mulheres. E é apenas um dos vários pedaços de ficção que o cineasta japonês envolveu na "melodia" de base: uma mulher ao volante de um carro que transporta um homem melancólico no banco de trás. O homem será o mesmo da dita sequência de abertura, mas agora já é outra jovem que entra em cena, uma motorista contratada pelo teatro, em Hiroxima, onde o ator e encenador se encontra numa residência artística. Entretanto passaram-se dois anos e uma tragédia, e os créditos iniciais de Drive My Car correm só ao fim de 40 minutos (das suas quase três horas de duração, como, de resto, o novo Batman...), provando que o tempo de um filme é o que se quiser fazer com ele. Assim nos habituou o realizador de Happy Hour.
Em todo o caso, não é pela dimensão temporal que se mede a grandeza de Drive My Car, um dos títulos mais bem posicionados para vencer o galardão principal dos Óscares. Hamaguchi forja aqui um modelo ultra refinado daquilo que se via, por exemplo, no anterior Roda da Fortuna e da Fantasia: qualquer coisa a meio caminho entre o poder secreto das palavras e o modo como vivemos através da representação. É por isso que o protagonista - o magistralmente contido Hidetoshi Nishijima -, na faceta de encenador, se destaca pelo método de ensaio que consiste na repetição da leitura do texto pelos atores. O método, lá está, do próprio Hamaguchi, que visa alcançar uma verdade emocional. Disso nos falará numa entrevista a ser publicada neste domingo no DN.
Para reduzir o filme a unidades mínimas, podíamos falar da relação entre o encenador e a motorista (Toko Miura, outro trunfo), que vai desenhando o arco narrativo com uma subtileza fascinante, ou da peça O Tio Vânia, de Tchékhov, que carrega a linha fantasma da mulher do protagonista, seja nos ensaios ou numa cassete que se ouve dentro do carro. Mas Drive My Car, obra-prima que não deve nada ao drama convencional, é mais do que a soma de ambos e de múltiplos detalhes e conexões. É uma explosão silenciosa. Um melodrama suave, eloquente e sensorial, que traz a catarse de mansinho, pelo frémito do motor de um Saab 900 vermelho. Uma das grandes estreias deste ano.
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