Médicos e doentes

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Não, este não é um artigo sobre a despenalização da eutanásia, mas pode ajudar no lento processo de reflexão a montante, imprescindível para formar uma opinião madura sobre qualquer assunto. Por convite do médico José Poças e do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, tive a missão de apresentar em Setúbal um livro coordenado pelo primeiro: A Relação Médico-Doente: Um Contributo da Ordem dos Médicos, Lisboa, By the Book, 2019, 755 pp. Trata-se de uma obra muito extensa, rica na diversidade do seu conteúdo - basta referir que para ele contribuíram 81 autores, alguns deles fora do campo médico - e orientada para um alvo concreto: a OM mobilizou-se para uma tarefa visionária iniciada em Espanha, a saber, apresentar à UNESCO uma candidatura da Relação Médico-Doente como Património Imaterial da Humanidade! Mesmo que este objetivo, requerendo uma grande coligação internacional de associações e personalidades, não venha a ser atingido, este livro é um bem em si próprio pelas muitas janelas que abre para o mundo intenso, doloroso e comovente dos laços que a doença cria entre quem precisa de ser cuidado e quem presta esse socorro.

Neste livro, que recomendo como leitura indispensável, revela-se uma verdadeira fenomenologia do mundo da saúde e do lugar do médico nesse universo. Na minha leitura, retiro três ideias-força. Primeira. Não é por acaso que nos campos de batalha se ouvem as vozes agonizantes dos feridos chamando apenas por três entidades possíveis: as mães, Deus e os médicos. O ato médico vive nas margens escatológicas da condição humana. Rasga-se nas arestas da fragilidade do corpo, na dor e no sofrimento. Segunda. Só existe medicina digna desse nome, usando uma terminologia de Max Weber, se a competência da profissão (Beruf) é motivada por uma prévia vocação (Berufung). Indo ao essencial: recuperar a saúde, poder continuar a viver, depois de qualquer ato médico que elimina a doença e extirpa a agonia, está para lá da esfera das transações (o que não significa falta de cuidado com o estatuto remuneratório dos médicos). O bom médico é aquele que ao longo da sua prática profissional vai acumulando créditos que nunca poderão ser pagos pelos seus doentes, a não ser como dívidas permanentes de gratidão e respeito. Terceira.

O ato médico é irredutível ao primado quantitativo do desempenho. A prioridade qualitativa da relação irrepetível do médico-doente é incompatível com a atual distopia da produtividade sem rosto, que acaba por levar a ineficiências paradoxais. Nos EUA, que reduziram a medicina quase completamente à esfera mercantil - e onde é possível um doente sem seguro morrer à porta do hospital -, a despesa com a saúde em 2018 atingiu 16,9% do PIB, contra 9,1% em Portugal ou 5,4% no Luxemburgo... Os recentes casos de agressão registados no SNS só podem ser identificados como sintoma de uma crise profunda. Resgatar da fadiga e do medo a frágil grandeza da relação médico-doente, como este livro o faz, é um serviço prestado à perpétua luta entre cultura e barbárie.

Professor universitário

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