Uma ilha batizada por portugueses e comprada por franceses no século XIX decidiu em mais do que um referendo ser integrada em França. Dez anos depois de se tornar no 101.º departamento do país, os indicadores de Mayotte pioraram, graças à explosão demográfica causada pela imigração. "Negra, muçulmana e de origem nas Comores, votei Marine Le Pen. A França esquecida somos nós." As declarações são de Amina, em 2018, quando a violência e a insegurança levavam esta secretária a pensar levar os filhos para a mais tranquila ilha da Reunião. Era este o cenário encontrado pela reportagem do Le Point. Três anos depois, Mayotte continua a ser um falhanço em toda a linha para as autoridades, com indicadores de terceiro mundo na educação, emprego, habitação ou saúde, num território que dista oito mil quilómetros do hexágono, mas que para todos os efeitos faz parte integrante de França desde 31 de março de 2011..Localizada no canal de Moçambique, a ilha mais a sul do arquipélago das Comores já era habitada por africanos e árabes quando os portugueses a chamaram de Mayotta, no século XVI. O nome virá do árabe maouti, "morte", ao que consta pela dificuldade de os navios passarem os recifes que a circundam (em rigor são duas ilhas, Grand-Terre e Petite-Terre e várias ilhotas). Quando chegou às mãos dos franceses, em 1841, teria uns 3000 habitantes em razão dos saques e da destruição feita por piratas. Foi para preservar a autonomia e a segurança da ilha que o sultão Andriantsoly a vendeu ao rei Luís Filipe. As restantes ilhas do arquipélago acabaram sob protetorado francês, mas Mayotte foi colonizada e manteve estatuto especial, é "Mayotte e dependências". Talvez isso explique porque os naturais da ilha, ao contrário dos outras das Comores, em 1974 e em 1976 votaram em referendo contra a independência. Ou porque, na sua história singular, nos anos 60 e 70 um conjunto de mulheres, as chatouilleuses, lutaram com a tortura das cócegas contra a influência das outras ilhas e contra a separação de França..O estatuto de Mayotte não foi aceite pelas Comores, entretanto independentes, nem pela Assembleia Geral da ONU, que condenou reiteradamente, entre os anos 70 e 90, o estatuto da ilha e defendeu o seu direito à autodeterminação. Em 2009, o mais recente referendo visou perguntar se os habitantes aceitavam a passagem para o estatuto de departamento de França, o que foi aprovado por 95% dos votantes. Há dez anos o estatuto entrou em vigor, colocando Mayotte ao lado de Guadalupe, Guiana, Martinica e Reunião, territórios ultramarinos sob a bandeira e o hino de França, e podendo aceder a fundos da União Europeia enquanto região ultraperiférica..Mayotte distingue-se destes departamentos e de outras "coletividades ultramarinas" como a Polinésia ou a Nova Caledónia por ser o único africano e de maioria muçulmana. Ao tornar-se num departamento, a legislação local tem de alinhar com a metropolitana, embora ainda tenha as suas particularidades, como por exemplo os cádis, juízes muçulmanos, poderem desempenhar funções de mediadores. Também a Segurança Social segue parâmetros próprios (por exemplo, o equivalente ao rendimento social de inserção é metade do que na metrópole)..Em 2018, a ilha foi sacudida por uma onda de violência de bandos tendo os estudantes como vítimas preferidas. A população (que tem uma média de 23 anos) reagiu com greves face à insegurança e ao défice de polícia. Prova de orgulho na nacionalidade francesa, nesse mesmo ano de distúrbios a população saiu à rua para mostrar o desagrado para com os rumores sobre uma mudança de estatuto da ilha, cuja soberania ficaria partilhada entre França e uma "comunidade das Comores".."Temos um enorme problema com a imigração ilegal. Estima-se que mais de 52% da população é ilegal. Ao ritmo dos nascimentos, a população será substituída em menos de dez anos", reconhecia o deputado Mansour Kamardine antes da visita de Emmanuel Macron, em 2019. Na sequência da viagem do presidente foi posta em prática a operação Shikandra, de combate à imigração ilegal, tendo logo nesse ano repatriado 27 400 comorianos. Mas o problema, além da pobreza que atinge a esmagadora maioria da população, das condições insalubres dos bairros de lata, do desemprego que atinge 28% da população legalizada, reside também nas tensões entre os naturais da ilha, os mahorais, e os imigrantes. Não faltam relatos de incursões violentas aos bairros de lata nas quais são destruídas as habitações precárias de quem fugiu de uma pobreza ainda maior..Mayotte oferece a França um espaço geoestratégico único - "um importante trunfo que deve permitir o seu desenvolvimento", como comenta o geógrafo Gérard-François Dumont ao Le Figaro - mas Paris ainda não apostou na preservação das riquezas naturais, um tesouro para o turismo, nem na habilitação da população. Todos os anos milhares de crianças ficam de fora do sistema escolar, sem lugar. Acresce que, segundo as estatísticas, 58% dos habitantes em idade laboral não sabem o básico da escrita em francês. Em 2019, o governo avançou com um plano de investimentos de 1,6 mil milhões de euros para infraestruturas e escolas..cesar.avo@dn.pt
Uma ilha batizada por portugueses e comprada por franceses no século XIX decidiu em mais do que um referendo ser integrada em França. Dez anos depois de se tornar no 101.º departamento do país, os indicadores de Mayotte pioraram, graças à explosão demográfica causada pela imigração. "Negra, muçulmana e de origem nas Comores, votei Marine Le Pen. A França esquecida somos nós." As declarações são de Amina, em 2018, quando a violência e a insegurança levavam esta secretária a pensar levar os filhos para a mais tranquila ilha da Reunião. Era este o cenário encontrado pela reportagem do Le Point. Três anos depois, Mayotte continua a ser um falhanço em toda a linha para as autoridades, com indicadores de terceiro mundo na educação, emprego, habitação ou saúde, num território que dista oito mil quilómetros do hexágono, mas que para todos os efeitos faz parte integrante de França desde 31 de março de 2011..Localizada no canal de Moçambique, a ilha mais a sul do arquipélago das Comores já era habitada por africanos e árabes quando os portugueses a chamaram de Mayotta, no século XVI. O nome virá do árabe maouti, "morte", ao que consta pela dificuldade de os navios passarem os recifes que a circundam (em rigor são duas ilhas, Grand-Terre e Petite-Terre e várias ilhotas). Quando chegou às mãos dos franceses, em 1841, teria uns 3000 habitantes em razão dos saques e da destruição feita por piratas. Foi para preservar a autonomia e a segurança da ilha que o sultão Andriantsoly a vendeu ao rei Luís Filipe. As restantes ilhas do arquipélago acabaram sob protetorado francês, mas Mayotte foi colonizada e manteve estatuto especial, é "Mayotte e dependências". Talvez isso explique porque os naturais da ilha, ao contrário dos outras das Comores, em 1974 e em 1976 votaram em referendo contra a independência. Ou porque, na sua história singular, nos anos 60 e 70 um conjunto de mulheres, as chatouilleuses, lutaram com a tortura das cócegas contra a influência das outras ilhas e contra a separação de França..O estatuto de Mayotte não foi aceite pelas Comores, entretanto independentes, nem pela Assembleia Geral da ONU, que condenou reiteradamente, entre os anos 70 e 90, o estatuto da ilha e defendeu o seu direito à autodeterminação. Em 2009, o mais recente referendo visou perguntar se os habitantes aceitavam a passagem para o estatuto de departamento de França, o que foi aprovado por 95% dos votantes. Há dez anos o estatuto entrou em vigor, colocando Mayotte ao lado de Guadalupe, Guiana, Martinica e Reunião, territórios ultramarinos sob a bandeira e o hino de França, e podendo aceder a fundos da União Europeia enquanto região ultraperiférica..Mayotte distingue-se destes departamentos e de outras "coletividades ultramarinas" como a Polinésia ou a Nova Caledónia por ser o único africano e de maioria muçulmana. Ao tornar-se num departamento, a legislação local tem de alinhar com a metropolitana, embora ainda tenha as suas particularidades, como por exemplo os cádis, juízes muçulmanos, poderem desempenhar funções de mediadores. Também a Segurança Social segue parâmetros próprios (por exemplo, o equivalente ao rendimento social de inserção é metade do que na metrópole)..Em 2018, a ilha foi sacudida por uma onda de violência de bandos tendo os estudantes como vítimas preferidas. A população (que tem uma média de 23 anos) reagiu com greves face à insegurança e ao défice de polícia. Prova de orgulho na nacionalidade francesa, nesse mesmo ano de distúrbios a população saiu à rua para mostrar o desagrado para com os rumores sobre uma mudança de estatuto da ilha, cuja soberania ficaria partilhada entre França e uma "comunidade das Comores".."Temos um enorme problema com a imigração ilegal. Estima-se que mais de 52% da população é ilegal. Ao ritmo dos nascimentos, a população será substituída em menos de dez anos", reconhecia o deputado Mansour Kamardine antes da visita de Emmanuel Macron, em 2019. Na sequência da viagem do presidente foi posta em prática a operação Shikandra, de combate à imigração ilegal, tendo logo nesse ano repatriado 27 400 comorianos. Mas o problema, além da pobreza que atinge a esmagadora maioria da população, das condições insalubres dos bairros de lata, do desemprego que atinge 28% da população legalizada, reside também nas tensões entre os naturais da ilha, os mahorais, e os imigrantes. Não faltam relatos de incursões violentas aos bairros de lata nas quais são destruídas as habitações precárias de quem fugiu de uma pobreza ainda maior..Mayotte oferece a França um espaço geoestratégico único - "um importante trunfo que deve permitir o seu desenvolvimento", como comenta o geógrafo Gérard-François Dumont ao Le Figaro - mas Paris ainda não apostou na preservação das riquezas naturais, um tesouro para o turismo, nem na habilitação da população. Todos os anos milhares de crianças ficam de fora do sistema escolar, sem lugar. Acresce que, segundo as estatísticas, 58% dos habitantes em idade laboral não sabem o básico da escrita em francês. Em 2019, o governo avançou com um plano de investimentos de 1,6 mil milhões de euros para infraestruturas e escolas..cesar.avo@dn.pt