Matos Fernandes: "O Governo vê com bons olhos este negócio [de venda das seis barragens] no Douro"
As alterações climáticas estão entre as principais causas do declínio da biodiversidade e são responsáveis pela extinção de mais de um milhão de espécies. Até que ponto os oceanos estão ameaçados e como contrariar esse efeito?
Se o grande tema até à data é o da mitigação, isto é, da redução das emissões, estou convencido de que agora o assunto ambiental é mesmo o da perturbação da biodiversidade e do restauro dos ecossistemas. Isso a pandemia tornou muito agudo. A consciência de que não se pode discutir saúde humana sem discutir saúde animal e saúde ambiental. Neste novo tema, Portugal aposta nesta presidência da UE dando o maior contributo para que tenhamos uma COP da biodiversidade no segundo semestre, com metas quantificadas. O grande segredo do Acordo de Paris foi fixar metas quantificadas e isso não existe para a biodiversidade. Como sabe, existe já uma estratégia europeia, que fala em tornar áreas protegidas 30% da terra e 30% do mar. Em Portugal não estamos nos 30% da terra, mas estamos nos 27% ou 28% do mar. O mar é o maior regulador do clima que temos. E temos duplamente de o proteger, no sentido de garantir que os seus ecossistemas continuam a cumprir a função de regulação e temos mesmo que proteger o mar da única agressão à qual não consegue responder: a do plástico. É insuportável o que estamos a fazer ao oceano.
Reforçou a necessidade de um acordo global sobre plásticos. Que acordo e com que premissas?
Em primeiro lugar, uma enorme redução da presença do plástico na sociedade. É preciso substituir materiais, entre eles o plástico, e estou a pensar nas fibras, que são usadas na nossa roupa, substituí-las por fibras celulósicas. Essa é a primeira questão. A segunda questão é que temos mesmo, e agora numa perspetiva da economia circular, de banir o descartável. Aquilo que verdadeiramente me move, e nos deve mover, é o fim do descartável. Todo ele. seja em que produto for. Por isso, temos de, em primeiro lugar, introduzir muito menos quantidade de plástico no mercado. E sermos capazes de o reciclar e reutilizar.
E esse acordo, ao nível da União Europeia [UE], deveria compreender algum tipo de medida quanto às importações da China? Taxar está em cima da mesa?
Esse não é um tema que ainda esteja em cima da mesa. Eu lancei um desafio, em nome da UE, que vai fazer o seu caminho. Há vários países que tomaram medidas, no sentido de reduzir bastante o uso do plástico. É fundamental fazê-lo em conjunto.
Defende o reutilizável em vez do descartável. No tema das máscaras houve indicações para não usar sociais mas as FFP2. Este tema poderá fazer parte do acordo e de que modo? A pandemia vai durar mais um ano e a poluição, por esta via, continuará...
Se houve, de facto, algumas vozes que criticaram as máscaras sociais, nunca o governo português embarcou nessas críticas. Boa parte das máscaras sociais estão certificadas e são produzidas com rigor. Eu só uso máscaras reutilizáveis e, obviamente, não deixo de me preocupar com a minha saúde e com a saúde dos outros. Não há qualquer razão para apelar ao descartável.
Destaquedestaque"Em primeiro lugar, é preciso uma enorme redução da presença do plástico na sociedade. Em segundo lugar, é banir o descartável"
Defende a mudança do modelo económico e enaltece o Acordo Verde Europeu como prova da determinação da UE. Contudo, alguns críticos dizem que não chega, que há muitas intenções e poucas ações. Como comenta?
Esta é mesmo uma luta e que ninguém ganhará se não se comprometerem todos. Só vamos ser neutros em carbono em 2050 se olharmos para os materiais de forma diferente. Ou seja, a forma como se produz, como se consome, como se usa. É para isso que nós queremos chamar aqui muito a atenção, nesta conferência hoje. Portugal já está numa posição confortável - a Europa está atrás de Portugal nas suas médias, no domínio da energia. É o tempo da produção, sobretudo sustentável.
Com a bazuca estão previstos incentivos neste sentido?
No domínio da indústria, transversalmente, a economia circular vai ficar no QFP [quadro financeiro plurianual] e não na bazuca. Agora, a bioeconomia tem aqui 150 milhões de euros para três setores concretos, dois de grande consumo e um que nós queremos que venha a crescer muito mais: calçado, têxtil e resinas. Nos dois primeiros, Portugal tem um papel de liderança ou coliderança mundial da produção. E no setor de resinas, Portugal já foi o terceiro maior produtor de resinas naturais do mundo e hoje tem um papel irrelevante. A aposta na bioeconomia é isto mesmo. É a substituição de produtos tóxicos, de produtos químicos para podermos continuar a desfrutar dos bens que nos dão conforto, mas utilizando produtos bio. Dou o exemplo das fibras celulósicas para a roupa, da incorporação de resinas naturais nas tintas e nos vernizes. É todo um setor em que nós temos de organizar, toda a fileira.
Estes 150 milhões são incentivos a estes três setores e, portanto, as empresas podem candidatar-se?
São iniciativas a estes três setores com lideranças claras, porque há aqui uma componente de inovação e desenvolvimento que é da maior importância. E, por isso, no caso do têxtil com o CITEVE, no caso do calçado com o Centro Tecnológico do Calçado e a APICCAPS, no caso da resina é menos evidente essa liderança e, portanto, será mais concursal aquilo que vai ser o apoiar desse mesmo setor.
Na transição energética, quais as prioridades durante o semestre da presidência portuguesa da UE?
Duas grandes conferências, semelhantes à de hoje, uma sobre o hidrogénio verde e outra sobre o green mining. Temos de discutir aquilo que é a concretização dos projetos de hidrogénio verde na Europa e a sua relevância, e temos de avançar com o que poderá ser o green mining. Uma segunda dimensão é a aprovação pelo Conselho de Ministros de junho do regulamento das redes transeuropeias. E o terceiro tema que é tanto de energia como de ambiente é o novo regulamento para as baterias. Nesse regulamento quero ir o mais longe possível, não consigo comprometer-me com a aprovação em junho, mas é mesmo da maior importância porque, pela primeira vez é feita uma abordagem a um produto na perspetiva de todo o seu ciclo de vida. Quando deixa de ser usado o que é que lhe vai acontecer? Isso é muito importante porque as baterias, que já existem em grande quantidade, vão multiplicar por múltiplo muito superior a 10 elevado a qualquer coisa nos tempos mais próximos, com a massificação da mobilidade elétrica. Temos de saber o que fazer às baterias. Este regulamento é fundamental. É muito importante para a segurança energética, mas também para a consolidação da economia circular.
Falando de energia, o senhor ministro foi ouvido no parlamento a propósito da venda das seis barragens da EDP, na bacia hidrográfica do Douro. O Bloco de Esquerda quis saber se "acautelou o cumprimento das obrigações fiscais das empresas". O senhor disse, no final de janeiro, que o Estado não tinha direito a reclamar qualquer contrapartida e que o negócio foi uma operação entre privados. Mantém? Afirmou ainda que o governo cumpre e cumprirá a lei e que se houver imposto a pagar será pago. Quando o saberemos?
Sendo o governo completamente alheio a este negócio, o governo vê com bons olhos este negócio. Isto é, a entrada de um grande operador industrial em Portugal adquirindo seis barragens - não tendo nós nada que ver com quais são as barragens ou deixam de ser - multiplica a concorrência que existe em Portugal e é boa para o modelo que temos de produção e consumo de energia. Portanto, eu não peço contrapartidas por uma coisa que considero positiva. Depois podemos discutir a legitimidade dessas contrapartidas, são obviamente ilegítimas. Aquilo que nós quisemos, e a preocupação que tivemos com aqueles territórios que eu conheço muito bem - tenho três bisavós de Sendim, no concelho de Miranda do Douro -, foi garantir que a empresa que vai explorar as barragens tem sede em Miranda do Douro e, de facto, essa foi a única exigência. Quanto ao Ministério do Ambiente, está na lei as razões pelas quais se pronuncia e têm todas elas que ver com os recursos hídricos. Isto é, apreciamos este negócio na perspetiva do cumprimento da utilização da água e da idoneidade do comprador. É isso que nós temos de avaliar. A forma como as entidades fazem o negócio é uma forma na qual obviamente o Estado não se pode meter. O pagar ou não pagar imposto de selo é uma decisão que cabe à Autoridade Tributária. Isto é, o imposto de selo é um imposto que é pago por declaração. Portanto, quem fez o negócio pagou ou não pagou. E vai agora ser avaliado pela Autoridade Tributária e tem quatro anos para o fazer. Os contribuintes são auditados todos os anos e vai descobrir se, de facto, a forma como o negócio foi feito tem algum valor económico ou não tem nenhum. Se isso assim acontecer, a EDP vai ser instada a pagar esse imposto de selo, e obviamente que o governo cumpre a lei. Se esse imposto de selo vier a ser pago vai para um fundo que foi previsto no Orçamento do Estado. O que é que nós sabemos? Relativamente à transmissão do bem tangível, do que está em domínio público e não é o edifício - e há até jurisprudência já sobre isto, em tempos, da Autoridade Tributária - não há direito a pagar IMI, não há direito a pagar IMT e, consequentemente, não há direito a pagar imposto de selo. Agora, há aqui uma transmissão de um bem tangível, que são as barragens, e de um direito, e há um negócio societário. Esse negócio societário, estar ou não estar sujeito a imposto de selo é uma avaliação que o Ministério do Ambiente não faz. É uma avaliação... nem sequer é o governo que a faz. Aliás, acho espantoso ouvir o Bloco de Esquerda e a deputada Mariana Mortágua a dizer que "é o governo através da APA", isto é de quem não tem a mais pálida ideia de governo é uma coisa e Estado é outra coisa. E a APA, de facto, não é governo.
Destaquedestaque"Isto é a entrada de um grande operador industrial [Engie] em Portugal adquirindo seis barragens [à EDP]... Portanto, eu não peço contrapartidas por uma coisa que considero positiva"
O governo criou um grupo de trabalho acerca do trespasse dessa concessão das seis barragens. Quando apresentará resultados?
Este grupo de trabalho está também dependente de, na conclusão do seu próprio trabalho, daquilo que são as propostas concretas que venham dos municípios. O que nós dissemos é que no fim de março o concluiríamos. Mas deixe-me explicar melhor a razão do grupo de trabalho. Aprovado na anterior legislatura, foi aprovado por PNPOT [Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território] que encontrou, claramente, duas manchas de território no país, profundamente desestruturadas. Uma é o pinhal interior, por causa dos incêndios de 2017, a outra é exatamente esta magnífica esquina do Douro. O grupo de trabalho vai muito além da perspetiva do paga imposto, não paga imposto. É um grupo de trabalho que vai enumerar projetos que em conjunto permitam que aqueles territórios tenham um futuro mais risonho do que aquilo que tem vindo a ser a tendência dos anos passados.
Falou há pouco do hidrogénio que ainda não saiu do papel e já gera polémica. Como leu as notícias de que é um dos suspeitos de favorecimento do consórcio EDP, Galp e REN?
Existe algum contrato assinado? Não. Existe algum financiamento prometido? Não. Existe algum dinheiro pago? Não. Sou eu ou é Portugal quem decide esses mesmos apoios? Também não. É a União Europeia. Portanto, confesso que não sei do que é possa estar a falar-se.
Ainda falando de energia, autorizar painéis solares na Torre Bela não foi o mesmo que destinar à morte aqueles animais de grande porte? E como prevenir situações futuras?
O que aconteceu na Torre Bela foi uma matança de animais que já foi... sobre a qual eu nada mais tenho a dizer. O inquérito do ICNF está feito. Concluiu, fora do próprio inquérito, que a forma como entidades autorizadas estavam a vender os selos de caça maior não tinha controlo e acabámos com isso. E, portanto, esta é uma questão que está no Ministério Público e será o Ministério Público a avaliar se existe alguma relação entre aquela matança e a instalação lá, por uma entidade que não é proprietária e que nem é de caçadores, que é quem ali quer fazer aqueles projetos. Se vamos estar mais atentos no futuro? Necessariamente. E por isso é que pedimos um conjunto de contributos para a revisão, não exatamente da Lei da Caça mas de todos os decretos-leis que a regulamentam, de forma a garantir que estas coisas não voltarão a acontecer. Qualquer instalação de painéis solares em Portugal acima de uma determinada dimensão obriga a uma avaliação de impacto ambiental e ela está a acontecer.
Terá falhado essa avaliação?
Não tem nada que ver com a avaliação propriamente dita e com o processo. A avaliação de impacto ambiental determina se pode, ou não, ali existir, se os impactos locais são mais significativos do que o ganho ambiental que resulta da produção de energia a partir daquele local. E é isto que está a ser feito. E é isso que tem de ser feito. O que aconteceu é uma coisa absolutamente inesperada, insólita e miserável. É inaceitável que aquelas coisas existam, isso não tem nada que ver com o destino futuro daquele terreno. Já vimos, por exemplo, que tinham sido abatidas árvores, e esse abate dessas árvores estava autorizado pelo próprio ICNF porque eram sobreiros que já estavam secos. Portanto não há qualquer razão para justificar que por instalar ali um parque solar se tenha cometido o que acredito profundamente que é um crime, mas só o Ministério Público o saberá qualificar.
Falemos de um novo modelo económico, que tenha em conta as alterações climáticas. Para Portugal que modelo económico é esse?
O modelo económico que temos de ter é o modelo onde não haja resíduos, porque todos os resíduos têm de ser produtos ou recursos para voltar a introduzir no processo de fabricação e de consumo, é o modelo económico em que a economia cresce, mas cresce neutra em carbono. Nós não podemos discutir os limites do sistema terrestre. Não vale a pena fazê-lo. Já sabemos quais são e estão quantificados. O modelo económico que eu defendo é o que regenera recursos e que, naturalmente, tem de ter, também, uma fiscalidade diferente. Habituamo-nos a recolher, essencialmente, receitas fiscais, a partir do mais renovável dos recursos, que é o trabalho. O trabalho contribui com 40% das receitas fiscais, em Portugal e na Europa. E as matérias-primas, se nós retirarmos a energia, contribuem em Portugal com 0,03% da receita fiscal, e a Europa está melhor, mas são 0,05%. E isto, de facto, não pode acontecer. Tem de haver, de facto, um incentivo, também do ponto de vista fiscal, para a reutilização.
Destaquedestaque"O modelo económico que temos de ter é neutro em carbono, regenera os recursos e, naturalmente, tem de ter também uma fiscalidade diferente"
E um imposto penalizador para quem não o fizer?
Sim, é preciso e está no programa do governo. E também a legislatura ainda não chegou a meio. É preciso, de facto, haver uma reforma do sistema fiscal onde, sem agravar impostos - ninguém está aqui a pensar em aumentar a receita fiscal -, se vai transferir impostos do trabalho para as matérias-primas, porque tem mesmo de ficar mais barato do que usar matéria virgem.
O plano de ação da economia circular pretende potenciar o crescimento. E o emprego?
A qualidade de emprego líquido não baixa. Vejamos aquilo que são as perspetivas da UE para o hidrogénio em Portugal na criação de emprego - entre sete mil e 12 mil postos de trabalho. Ou o cluster eólico em Viana do Castelo, que foi responsável por três mil postos de trabalho diretos e que é responsável hoje por cerca de 400 milhões de euros de exportação. É claro, no roteiro para a neutralidade carbónica e no European Green Deal, aqueles que acham que ambiente e economia estão de costas voltadas estão completamente errados. O investimento na sustentabilidade é, de facto, criador de riqueza e, portanto, é bom para o emprego e para a economia. Sendo que alguns empregos terão de ser requalificados porque a exigência será cada vez maior. E, portanto, tem de haver, de facto, emprego muito mais qualificado. Acho que nenhum de nós tem dúvidas em coisas tão simples como isto. As skills são completamente diferentes e são mais exigentes. A economia circular é criadora de emprego e, sobretudo, criadora de emprego qualificado.
No Plano Nacional de Investimentos, 85% será alocado a infraestruturas sustentáveis e 46% do Plano de Recuperação e Resiliência em ação climática. Pegando nestes grandes números e traduzindo-os em projetos e obras, quais são eles?
O facto de dizer 46% do investimento em ação climática não quer dizer que 46% do investimento é gerido pelo Ministério do Ambiente. Aliás, eu direi que é fundamental que o não seja. O que é grave são aqueles que pensam, independentemente do mérito que lhes atribuem, que as questões ambientais são problema de ambientalistas e de ministros do Ambiente. Não. Devem mesmo sair desta caixa para podermos ganhar esta batalha em que estamos todos envolvidos. Os grandes investimentos diretos são os investimentos do metro de Lisboa e Porto e a reforma da paisagem, em que para a floresta são 440 milhões de euros. Temos grandes investimentos na eficiência energética de edifícios, são 620 milhões de euros, dos quais 300 milhões apenas para edifícios residenciais e com um forte combate também à pobreza energética. Tivemos muito sucesso neste pequeno programa que lançámos, de quatro milhões de euros. Quem está em situação de pobreza energética não tem tesouraria para fazer a obra, portanto, vai ter um voucher à cabeça - queremos chegar a cem mil famílias. Falamos ainda dos investimentos na produção de hidrogénio e gases renováveis, são 200 milhões de euros que estão aqui. Fora da lista que tenho à minha frente, há 620 milhões de euros geridos na economia para a descarbonização da indústria e uma parcela muitíssimo significativa para a habitação e também conta para a meta do clima. Vai ser feita com condições de conforto climático e de neutralidade carbónica.