É tido como o café mais antigo de Lisboa e Luís Machado, autor do livro Martinho da Arcada, um café de todos nós, arrisca-se a dizer que poderá ser o mais antigo de Portugal. No próximo dia 7 de janeiro celebra 240 anos e as celebrações já começaram, com a publicação da mais recente obra de Luís Machado, cuja vida nas últimas décadas se confunde com a do Martinho, uma das suas grandes paixões.."A minha relação com o Martinho da Arcada começou muito para trás. Eu tinha 17 anos, em 1967, e o meu pai quando ia à Baixa chegou a parar algumas vezes ali no café e eu fiquei com aquela imagem. Mais tarde, em 1977, tinha uma namorada que morava do outro lado do rio. Os barcos naquela altura estavam todos centralizados na Praça do Comércio, e eu, quando ia esperá-la ao barco, tinha por hábito tomar um café ao balcão no Martinho da Arcada", conta ao DN Luís Machado, que é também secretário-geral da Associação Portuguesa de Escritores..A definitiva aproximação ao café deu-se em 1991, quando Luís Machado levou as suas tertúlias "Conversas à quinta-feira" do Bairro Alto para o Martinho da Arcada. Até aos dias de hoje. Por lá passaram figuras das mais diversas áreas, desde Álvaro Cunhal a Mário Soares, Amália Rodrigues, Júlio Pomar, José Saramago, Rui Nabeiro, entre outros. "Tirando aquelas paixões que todos temos na vida, que normalmente dá nas idades mais jovens, acho que me ficaram duas. Uma é o Martinho da Arcada, algo a que me tenho dedicado com muito amor e muita paixão, e a outra é o trabalho que desempenho na Associação Portuguesa de Escritores"..Das mais de uma centena de tertúlias que organizou nas últimas décadas, há algumas que lhe ficaram na memória, como a vez que recebeu Álvaro Cunhal e cujo encontro o estava a deixar inseguro e sem saber como haveria de quebrar o gelo com o então ainda secretário-geral do PCP. Até que foi salvo pela astrologia. "Conduzi-o à mesa, ele sentou-se e estivemos dois minutos praticamente em silêncio, que pareceram uma eternidade. De repente, lembrei-me que éramos os dois escorpião e nascidos a 10 de novembro. Então, para quebrar o gelo, decidi conversar com ele sobre isso. Contei-lhe a coincidência e perguntei-lhe se ele gostava de horóscopos e ele respondeu: "há umas camaradas que me mandam de vez em quando uns horóscopos". E, a partir daí, consegui quebrar o gelo. É uma história que guardo como um momento importante porque, durante a tertúlia, consegui desviar parte da conversa para temas culturais, não só a política, falando sobre o que é que ele pensava do Fernando Pessoa, do Almada Negreiros, quem era o Manuel Tiago [pseudónimo literário usado por Cunhal], e aí ainda não revelou que era ele", recorda..A ida de Amália Rodrigues a uma das tertúlias também é episódio que nunca esquecerá, devido ao atraso da fadista. A sessão estava marcada para as 20.00 e às 20.45, quando Luís Machado, após muitos telefonemas sem sucesso para a casa da fadista em São Bento, se preparava para cancelar a sessão, eis que surge Amália, de óculos escuros, acompanhada pelo agente artístico, João Belchior Viegas, e a pintora Maluda. "A Amália chegou, fez aquele ar, nunca tirou os óculos escuros, e depois disse umas breves palavras pedindo desculpa porque tinha confundido a hora do jantar: pensava que era às 21h00. A partir daí a conversa surgiu com toda a naturalidade. O nosso diálogo foi excelente, contou imensas histórias, falámos de coisas pouco simpáticas que tinham a ver com o 25 de Abril e as perseguições que alguns lhe moveram. Inclusivamente, ela desabafou comigo, dizendo que algumas dessas pessoas eram visitas habituais da sua casa e que, depois do 25 de Abril, quando se cruzavam com ela na rua fingiam que não a conheciam e atravessavam, se possível, para o outro lado. Isto porque a Amália tinha sido conotada com o regime da ditadura e até chegaram a dizer que ela teria sido agente da PIDE"..Estas histórias estão na memória de Luís Machado, mas ficaram fora de Martinho da Arcada, um café de todos nós, que, ao longo das suas mais de 120 páginas, presta homenagem aos 240 anos do local, contando as etapas mais marcantes do espaço histórico de Lisboa, mostrando fotografias inéditas, recordando as décadas de tertúlias e algumas histórias curiosas do espaço e, claro, dedicando uma especial atenção a Fernando Pessoa, o mais famoso frequentador do café e que, até hoje, tem reservada a mesa onde tomou o seu último café, na companhia de Almada Negreiros, três dias antes de morrer..Há outra história que também não consta do livro, mas que Luís Machado decidiu partilhar com os leitores do DN para mostrar o impacto que Fernando Pessoa tem ainda hoje. "Um dia estava eu no Martinho da Arcada e vejo um casal de brasileiros que pede licença ao proprietário, que estava ali na sala, para tirar uma foto à mesa do Fernando Pessoa. E, antes de tirar a foto, é quase caricato, a senhora ajoelha-se defronte da mesa, benzeu-se, levantou-se e tiraram então a fotografia. Depois os senhores passaram e e eu disse-lhes: "Gostam muito do Fernando Pessoa!". Ao que ela respondeu: "Ele é um santo! E nós viemos aqui de propósito para visitar o café e estar junto à mesa""..Para Luís Machado, o Martinho da Arcada tem uma grande importância histórica e cultural, primeiro porque graças à sua longevidade assistiu a momentos importantes da vida de Portugal. Em termos culturais, sempre teve uma estreita ligação às artes, tendo sido frequentado por artistas, além do incontornável Fernando Pessoa, como Almada Negreiros, Agostinho da Silva, Alexandre Herculano, Bocage, Eduardo Lourenço, Egas Moniz, Gago Coutinho, João Villaret, Manoel de Oliveira, Maria Helena Vieira da Silva, José Saramago, Sophia de Mello Breyner, entre outros..Nos dias de hoje, Luís Machado defende que o espaço mantém a sua componente cultural graças às tertúlias, mas é também um café de turistas. "Em termos turísticos, é um local que se está cada vez mais a internacionalizar, recebe muitos turistas, sobretudo brasileiros, que têm uma veneração enorme por Fernando Pessoa. Em termos de lisboetas, já foi mais, porque fecharam uma série de coisas ali na Baixa e era normalmente muito frequentado pelos funcionários dos ministérios. Ainda é, mas sobretudo aos pequenos-almoços"..A história e o sucesso do Martinho da Arcada não impediram que já por duas vezes, na história mais recente, o café estivesse quase a fechar portas. No final dos anos 1980, estava muito degradado e a precisar de obras: "Em 1985 surgiu um movimento criado por uma professora de Português, Maria do Carmo Vieira, com um grupo de alunos do 11.º ano, em defesa do espaço e, que dois anos mais tarde, deu origem à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada. Se não tivesse surgido não sei se o café teria resistido. O movimento deu azo a que se conseguisse sensibilizar o governo e depois criar a associação. E, a partir daí, o Martinho foi recuperado e não caiu nas mãos de um banco, como havia propostas para o comprar"..O segundo susto aconteceu em 2009, com a requalificação da Praça do Comércio, que levou para a porta do Martinho da Arcada os autocarros, e a consequente poluição, que antes passavam na Ribeira das Naus. "A esplanada passou a ser um local impossível de ser estar, o barulho e a poeira eram de tal maneira grandes que, ao fim de três/quatro meses, a faturação começou a descer. Nessa altura, curiosamente, as pessoas que em 1987 desencadearam o movimento não estavam lá, não assinaram o manifesto que encabecei, o qual assinaram 227 pessoas nos 227 anos do café, desde antigos Presidentes da República, pessoas de todos os partidos e da cultura. Assinaram e isso foi muito importante porque teve um amplo apoio da comunicação social, que divulgou a possível morte do Martinho. Geraram-se movimentos espontâneos de grande autenticidade. As obras, felizmente, abreviaram um pouco e o Martinho lá conseguiu recuperar", recorda Luís Machado..As celebrações dos 240 anos do Martinho da Arcada, que abriu portas a 7 de janeiro de 1782, vão ser marcadas por várias iniciativas. Uma delas é o regresso das tertúlias "Rostos da Portugalidade", moderadas por Luís Machado, com cinco convidados: o realizador António-Pedro Vasconcelos (18 de novembro), a coreógrafa Olga Roriz (2 de dezembro), o músico Sérgio Godinho (15 de dezembro), o embaixador António Monteiro (13 de janeiro) e o fotógrafo Eduardo Gageiro (27 de janeiro)..Pelo meio, no dia 27, haverá "um recital com poesia de Fernando Pessoa, de alguns heterónimos e do semi-heterónimo Bernardo Soares, que terá a colaboração da atriz Dalila Carmo", explica Luís Machado, adiantado que este recital "tem entrada livre e realiza-se a partir das 17.00..Vai ser ainda levado a cabo o projeto "Era uma vez um café", no qual turmas do ensino secundário, em janeiro, podem visitar o Martinho da Arcada e ouvir contar a sua história. "Vai haver ainda a edição especial de uma serigrafia especial que assinala dos 240 anos e que será editada pelo Centro Português de Serigrafia", conta, em primeira mão, o escritor. "Há ainda uma causa pela qual estamos a lutar e que eu gostava muito que se conseguisse, que era criar o Prémio Martinho da Arcada - Prémio Literário de Poesia e que, se encontrarmos patrocinador, poderá ser já atribuído no final de 2022", revela..As comemorações terminam oficialmente a 7 de janeiro com um jantar, no qual será lançado o livro Martinho da Arcada, um café de todos nós. "Esperamos que o Martinho continue a resistir, lutando como sempre e recolhendo a adesão das pessoas que verdadeiramente o consideram o café de todos nós", remata Luís Machado..ana.meireles@dn.pt