Nenhum habitante do Olimpo tem as costas mais largas. Ovídio, que era escritor entendido em matéria de amores terrenos e divinos, dizia-o filho do despeito de Juno, que ao ver o marido, Júpiter, o mais poderoso dos deuses, gerar sozinho Minerva, não quis ficar-lhe atrás. Conduzida pelo desassossego do ciúme, a olímpica esposa procurou Flora, esperando que, no seu vasto herbário, esta encontrasse filtro capaz de a ajudar na realização do objetivo. Segundo Ovídio, o expediente mostrar-se-ia acertado, já que, da ingestão de certa planta tida por milagrosa, haveria de nascer uma criança de constituição robusta a quem foi dado o nome de Marte. Os romanos, povo que acreditava nos termos da paz imposta pelas armas, ergueram-lhe altares e veneraram-no como protetor da cidade e senhor da guerra..André Simões, professor de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, realça a importância que os romanos atribuíam a Marte, comparável somente à de Júpiter, "rei" absoluto do Olimpo. "Basta dizer que o primeiro mês do calendário tradicional romano (o terceiro do nosso) tinha o seu nome: Mars. Também quando se consagrou o sistema da semana de sete dias, teve direito a um deles: Martis dies (o espanhol martes, o francês mardi, o italiano martedì...)." Por outro lado, sublinha "a lenda canónica da fundação de Roma confere-lhe um papel central, já que foi ele quem engravidou a vestal Reia Sílvia, tornando-se pai dos gémeos Rómulo e Remo". A importância religiosa de Marte era tal que, como sublinha André Simões, era-lhe devotado "um dos três mais importantes sacerdotes romanos: o Flamen Martialis (Flâmine de Marte), que integrava o principal colégio sacerdotal, constituído por 15 flâmines. Entre os três principais estava o de Júpiter (Flamen Dialis), o de Marte e o de Rómulo divinizado (Flamen Quirinalis)"..Nem os imperadores escapavam à necessidade de o honrar por razões religiosas, mas também de legitimidade política: "Importa recordar que o novo fórum mandado construir pelo imperador Augusto, e inaugurado em 2 a.C., tinha como elemento principal o templo de Mars Vltor (Marte Vingador). A razão era ao mesmo tempo política e religiosa: Augusto, filho adotivo de Júlio César, reclamava ser descendente da deusa Vénus. Com efeito, a família dos Júlios dizia-se descendente de Julo, filho do herói troiano Eneias, por sua vez filho de Vénus." Segundo a lenda popular no século I a.C., este fugira de Troia, em chamas, com a missão de refundar a cidade numa terra a ocidente. Após muitas peripécias, narradas na Eneida de Vergílio, aportara à costa italiana, tendo vindo a fundar a cidade de Lavínio, em homenagem à princesa itálica com quem se casou, Lavínia. Trinta anos depois, o seu filho Julo fundou Alba Longa..Esta genealogia mítica prossegue até à fundação de Roma "Séculos mais tarde, afirma André Simões, a vestal Reia Sílvia, filha do rei Numitor, descendente de Julo, engravidou de Marte, tendo dado à luz Rómulo e Remo. Assim, Júlio César e Augusto reclamavam como antepassados Vénus e Marte. Por outro lado, a dedicação deste templo de Marte Vingador, em 2 a.C., surgiu na sequência de uma promessa feita por Augusto, em 42 a.C., na batalha de Filipos, quando derrotou os assassinos de César, Bruto e Cássio. Assim, este templo, peça central do novo fórum, é ao mesmo tempo uma afirmação religiosa e política - e o epíteto de Vingador não deixa de ser significativo.".As populações partilhavam deste entusiasmo pelo culto ao deus guerreiro. Para além dos numerosos altares votivos que lhe eram erguidos (muitos dos quais ainda existentes nos territórios em tempos ocupados por romanos, incluindo na Península Ibérica), todo o mês de março era um desfilar de cerimónias e rituais que serviam para invocar o seu favor para as campanhas militares que se iniciavam na primavera, quando os caminhos se tornavam mais transitáveis para homens, cavalos e quadrigas, mas também para os trabalhos agrícolas, de que, numa associação que hoje nos parecerá estranha, também ele era o protetor. Alguns destes rituais foram mantidos posteriormente, em mundos totalmente diferentes dos conhecidos pelos romanos, como a vigília de armas, durante a qual um comandante militar pedia à providência divina uma vitória tão suave em baixas quanto possível..Como muitas outras manifestações da cultura romana, a forte influência grega também se manifestou na mitologia. No entanto, embora existam pontos de contacto, Marte não é uma simples versão revista e aumentada do grego Ares. Como referem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant no seu Dicionário de Símbolos, o grego era, na verdade, bem menos triunfal do que o seu "gémeo" romano: "Deus da guerra, Ares é filho de Zeus e de Hera. Entretanto, ele é o mais odioso dos imortais, diz o seu pai; este louco que ignora as leis, diz a mãe; este furioso, este cabeça de vento, diz Atena, sua irmã. Brilhantemente armado de elmo, couraça, lança e espada, nem sempre é brilhante nas suas proezas. Atena ultrapassava-o no combate graças à sua inteligência; Diomedes chegou a ferir o deus num corpo-a-corpo devido à sua maior destreza; Hefesto colocou-o numa posição ridícula perante Afrodite.".Os amores de um deus.Onde Ares era trapalhão, Marte, apesar do génio belicoso, era também graça e sedução. Talvez porque as imortais não fossem imunes aos encantos de uma bela farda, tornou-se um dos amantes mais bem-sucedidos do Olimpo. Dos seus amores com a vestal Reia Sílvia terão nascido, como vimos, os gémeos Rómulo e Remo, tidos por fundadores de Roma depois de amamentados por uma loba. Entre as apaixonadas de Marte conta-se ainda Anna Perena, a deusa do Tempo que Passa, que, para tentar seduzir o belo guerreiro, se fez passar pela jovem Minerva, a quem ele cobiçava sem sucesso. Este episódio, relatado por Ovídio, originou os festivais dos idos de março (realizados a 15 desse mês), durante os quais seria assassinado Júlio César no ano 44 a.C, nos degraus do Senado de Roma. Para a história teria ficado o aviso de um adivinho que lhe terá dito: "Cuidado com os idos de março", mas o general prosseguiu a sua política, sucumbindo ao punhal erguido por Bruto..A mais famosa amante de Marte foi, no entanto, a esplendorosa Vénus que, apesar de casada com Vulcano (o ferreiro divino que a seu cuidado tinha a tutela do fogo), se tomou de arrebatadora paixão pelo guerreiro. Este retribuiu-lhe com idêntica intensidade e, desse encontro de deuses, viria a nascer uma criança com gosto pelo tiro ao alvo a que foi dado nome de Cupido. Mas o escândalo também nasceria do olímpico adultério. Descobertos por Vulcano, caíram na cilada que este lhes montou, na forma de uma rede de bronze tão impercetível ao olhar como resistente quando, vendo-se enredados, os dois amantes a tentaram destruir. A Vulcano bastou entrar e surpreendê-los, tornando-se o caso motivo de chacota na assembleia divina. Não era todos os dias que se derrotava Marte e o ferreiro disforme, oculto dos olhares do mundo no segredo da forja, derrotara, com astúcia, o belo e garboso rival..Abandonado o culto ao deus de elmo guerreiro à medida que o cristianismo substituiu a antiga religião greco-romana, ficou, no entanto, a sua simbologia em linguagens que partilham o gosto pela metáfora como a literatura ou a astrologia. Marte, planeta regente de dois dos signos considerados mais assertivos do Zodíaco (Carneiro e Escorpião), está associado ao fogo dos desejos irreprimíveis, ao dinamismo e à vontade indómita. De quem se apresenta aos outros em atitude bélica diz-se que é marcial. Ao planeta de superfície avermelhada atribuir-se-ia também o nome de Marte em atenção à força da sua tonalidade. Na literatura e até na pintura, Marte passou a ser usado frequentemente como metáfora da guerra. Em plena Primeira Guerra Mundial, a sua figura, revestida de elmo, couraça e escudo, foi frequentemente utilizada em cartoons associada aos mais sangrentos campos de batalha. Em 1918, quando as nações beligerantes se preparavam finalmente para assinar a paz, Emmerico Nunes criou um cartoon que tinha justamente como título "Marte despede-se"..A Idade Moderna, com o seu culto pela Antiguidade Clássica, representou-o de forma mais suave. Em pleno século XV, Botticelli pintou os amores de Vénus e Marte, e o seu corolário burlesco às mãos do engenhoso Vulcano, tema que também inspiraria muitos escritores e poetas, como os britânicos Shakespeare e John Dryden. Mais ousado, Luís de Camões, também ele um muito bom conhecedor da mitologia e da cultura clássica em geral, não hesitou em colocar os marinheiros de Vasco de Gama, na viagem que conduziria à descoberta do caminho marítimo para Índia, sob a proteção de Marte. Reconhecendo neles algumas das virtudes dos heróis antigos cantados por Virgílio, o deus romano procurou favorecê-los. Embora contasse com a oposição de Baco, que temia ser esquecido devido à fama decerto obtida pelos portugueses se chegassem a paragens tão orientais, tinha, no entanto, o apoio de Vénus. Enquanto Marte lhes incutia ânimo para vencer os inimigos que lhes apareciam ao caminho, Vénus soube proporcionar-lhe lugar de muito aprazível descanso, levando-os à ilha dos Amores. E assim, com amigos tão influentes, puderam eles chegar muito além da Taprobana.