É uma coincidência de datas redondas, que cruzou, num ano tão atípico como este, as duas décadas de carreira de Mariza, a maior embaixadora do fado da atualidade, com o centenário do nascimento de Amália Rodrigues, a figura maior da história desse mesmo fado. Razão mais do que suficiente para Mariza se aventurar finalmente a interpretar em disco o legado de Amália, concretizando assim um desejo antigo, mas tantas vezes adiado..Mariza Canta Amália - assim se chama, de forma simples e direta o disco - é composto por dez dos mais emblemáticos temas de Amália Rodrigues, como Barco Negro, Estranha Forma de Vida ou Foi Deus, interpretados por Mariza num registo mais orquestral, com arranjos do músico, maestro e compositor brasileiro Jaques Morelenbaum, colaborador habitual de gente como Caetano Veloso ou Ryuichi Sakamoto e que já em 2005 havia produzido o terceiro álbum da fadista, Transparente. O objetivo "era fazer algo intemporal, que pudesse ser ouvido daqui a vinte ou trinta anos por quem gosta de música", como revela nesta entrevista ao DN..Ainda é um risco cantar Amália? Acho que não. Tal como um americano gosta de cantar Sinatra ou Ella, também os portugueses têm de cantar Amália, que nos deixou um legado enorme exatamente para isso, para ser cantado. Seria uma tristeza se não o fizéssemos, até porque é nossa obrigação manter essa memória viva. Pelo contrário, creio que preciso de continuar a cantá-la também para validar e dignificar tudo o que Amália nos deixou. Não fazê-lo é que era desrespeitoso e desprestigiante..Mas passados já vinte anos sobre o desaparecimento físico de Amália Rodrigues ainda é com pinças que se toca na sua obra, concorda? Isso eu entendo, até por uma questão de respeito para com aquela que foi o maior ícone do fado e a maior embaixadora da cultura portuguesa além-fronteiras. A Amália era uma pessoa inteligentíssima, que não só soube rodear-se dos melhores compositores e poetas como ela própria, quando começou a escrever, revelou um talento imenso. Basta ler poemas como Lágrima ou Gente da Minha Terra, para se perceber isso mesmo..O que a levou a fazer agora um disco com temas de Amália Rodrigues? Na verdade, era um disco já pensado há muitos anos, entre mim e o meu agente, o João Pedro Ruela. Sempre falámos disso e sabíamos que um dia iria acontecer, só não tínhamos era noção de quando. Queria fazê-lo por respeito a Amália, pela importância do legado, mas também como agradecimento, pois, apesar de a ter descoberto muito tarde, foi desde logo uma influência muito grande na minha carreira. Mas não punha sequer a hipótese de o fazer já, assim tão depressa..Como é que descobriu Amália? Aí por volta dos 16 anos, na Baixa, mas só mais tarde, quando volto ao fado, já com 24 anos, é que fiquei realmente maravilhada com todo o universo de Amália Rodrigues. O Jorge Fernando contava-me muitas histórias maravilhosas dela e eu ficava fascinada a ouvi-lo..Este é, no entanto, um disco bastante orquestral, que foge um pouco aos ambientes de fado mais tradicional. Sim, mas o objetivo foi mesmo esse. Um dos discos da minha vida é o do Frank Sinatra com o Tom Jobim, que de certa forma foi uma das principais inspirações para este álbum. Queria fazer algo intemporal, que pudesse ser ouvido daqui a vinte ou trinta anos por quem gosta de música..Foi por isso que convidou o músico brasileiro Jaques Morelenbaum para fazer os arranjos e a direção de orquestra? Esse disco do Sinatra e do Jobim tem arranjos do Claus Ogerman, de quem eu sei que o Jaques é um enorme fã. Ele próprio trabalhou com o Tom Jobim e, além de ser um amigo, é uma pessoa com um universo musical infinito, pelo que me parecia a pessoa perfeita para ter comigo neste projeto. Quando lhe disse que queria fazer uma coisa assim, ele adorou a ideia e respondeu logo que sim..Num universo tão vasto como é a obra de Amália Rodrigues, qual foi o critério de seleção dos temas? Isso foi bastante complicado. Quando fui para o Rio de Janeiro levava uma lista de trinta temas, mas o Jaques disse-me logo que seria impossível inclui-los todos, pelo que tivemos de fazer uma segunda escolha até chegarmos aos dez presentes no disco. Digamos que essa seleção final foi feita para ter temas que resumissem da melhor forma o legado de Amália, os quais me sentisse confortável a cantar e que também fossem reconhecidos pelo público..Apesar de já ter gravado alguns temas de Amália, optou agora por fados que nunca tinha incluído em nenhum dos seus discos. Sim, a única exceção é o Barco Negro, ao qual fiz questão de regressar, vinte anos depois, para revisitar e perceber como ainda me consigo surpreender com essa música..Outra característica deste disco é a suavidade e a subtileza com que interpreta os temas. Concorda? Não sei, nunca tinha pensado, talvez tenha a ver com a forma como senti estas músicas. Quando comecei a cantá-las fi-lo apenas acompanhada ao piano e violoncelo; se o tivesse feito com guitarra e viola, se calhar o resultado teria sido outro. Acima de tudo, sinto estes temas mais como canções. Lágrima, por exemplo, que ouvia na taberna dos meus pais, sempre de uma forma tão pesada e nunca tinha cantado antes, é para mim, hoje, uma canção de amor. E no próprio Barco Negro sinto uma melancolia que não é propriamente tristeza, como se se tratasse do reverso da alegria de um amor que não foi possível, mas que existiu e por isso há espaço para um sorriso. O próprio Jaques me disse para não me preocupar com isso, que cada cantor sente as canções de maneira diferente. E foi isso que eu fiz, cantei estes temas todos à minha maneira. Nunca existiu nem existirá a tentação ou a pretensão de imitar ou me comparar com Amália, que é única..Já há planos para apresentar o álbum ao vivo tal e qual como foi gravado, com orquestra? Essa apresentação está marcada para o final de 2021, pois agora, como está tudo, é impossível realizar um concerto assim, e gostaríamos muito de contar com a presença do Jaques Morelenbaum..Como é que tem vivido esta realidade tão atípica? É muito difícil. A música é a minha vida e o meu trabalho. Sempre me senti uma privilegiada por isso, mas neste momento não tenho qualquer meta. Não há concertos, não podemos viajar. É uma situação muito complicada para tanta gente, porque esta é uma indústria que funciona em teia, em que estamos todos muito dependentes uns dos outros. Dos 110 concertos que tinha marcados para este ano sobraram cinco, e tudo o que tínhamos para o próximo ano também já está a ser cancelado. Mas tento ser sempre uma pessoa positiva e acredito que alguma coisa irá acontecer para resolver esta situação.