Costumam apresentar-se como amigos que fazem música juntos e talvez nunca, como agora, essa descrição tenha feito tanto sentido na história do Mário Laginha Trio, ao transformarem conceitos mais ou menos abstratos como liberdade, cumplicidade ou confiança num dos mais belos álbuns de jazz dos últimos anos. Já há 15 anos que Mário Laginha (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria) tocam lado a lado, isto de forma oficial, porque os respetivos caminhos cruzados já se haviam cruzado muito mais atrás, tal como se espera das verdadeiras amizades. Enquanto Trio, já contavam com dois álbuns editados, Espaço (2007) e Mongrel (2010), muitos quilómetros de estrada e talvez quase outras tantas horas de palco, como tão bem se percebe neste novo Jangada. "Este álbum reflete um trabalho feito por este trio ao longo do tempo, com a diferença de que agora tivemos tempo para tocar, sem pressões nem obrigações além do prazer de estarmos juntos", afirma ao Mário Laginha..Apesar de grande parte das músicas terem sido criadas antes da pandemia, os sucessivos confinamentos, bem como os consequentes cancelamentos de espetáculos, acabaram por se revelar uma oportunidade para o trio, como recorda o músico e compositor lisboeta: "Logo no início de 2020 decidimos que nos iríamos passar a encontrar semanalmente, só para tocarmos juntos e só parámos essa rotina durante aquele período mais duro do primeiro confinamento. Não era para ensaiar, não havia a pressão de um concerto, nem sequer nenhuma ida acelerada para estúdio, era só mesmo pelo prazer de tocarmos juntos"..Ao longo desses meses, foram também explorando, em conjunto e "de uma forma totalmente nova", a música que Mário Laginha tinha vindo a escrever para o trio. O objetivo, confessa Mário Laginha, "era já fazer um disco a partir desse trabalho regular enquanto banda" e quando finalmente o gravaram, o resultado final estava muito mais próximo dos concertos ao vivo que das habituais sessões de estúdio. "Foi muito positivo, porque apesar de todos os temas terem sido escritos, este processo permitiu-nos aproximar bastante do som que fazemos ao vivo, com muito mais liberdade de improvisação", sublinha..Ao longo deste processo, os temas foram também ganhando "uma identidade partilhada", pois "a música nasce com a cara do compositor, mas vai-se transformando e crescendo com o contributo criativo do Bernardo e do Alexandre", acabando por ganhar também o ADN deles. "Todos os temas foram trabalhados de uma forma muito coletiva e isso sente-se no disco. Estamos mais libertos e esse é um caminho no qual quero permanecer no futuro", garante. Quanto aos troncos desta jangada, são também muitos e variados: "São as influências que trazemos do jazz, da Música Portuguesa, da Música Clássica ou da Música Africana. É com elas que navegamos". O próprio título não foi escolhido ao acaso, sendo resultado de um desafio proposto pela Fundação José Saramago, que convidou o músico a criar uma música inspirada pela obra do Nobel da Literatura. Foi assim que surgiu The Stone Raft, uma extensa faixa, com mais de 16 minutos, inspirada no livro Jangada de Pedra. "Quis que representasse um pouco o livro, a crítica à União Europeia representada pela separação da península ibérica do continente europeu, com aquela massa de pedra à deriva pelo oceano. É o tema mais longo que alguma vez fiz, porque queria que soasse um pouco como uma banda sonora para o livro", explica..O novo trabalho marca também a estreia discográfica em nome próprio de Mário Laginha pela prestigiada editora de britânica Edition Records, casa de alguns dos maiores músicos de jazz da atualidade. "Já tinha editado lá dois discos, com o saxofonista Julien Arguelles, mas fiquei sempre com a sensação que o tinha conseguido porque o Julien é artista da casa (risos). E desta vez decidi enviar o master ao Dave Stapleton, o patrão pela editora. Passado algum tempo e para grande surpresa minha respondeu-me, a dizer que adorava o disco e queria editá-lo. É muito importante não só porque é uma das melhores editoras de jazz do mundo e isso abre muitas portas, mas também por ser a casa de alguns dos meus heróis musicais, como o Dave Holland ou Chris Potter"..O álbum teve uma primeira pré-apresentação ao vivo no início do mês passado, no Auditório de Espinho e a próxima está prevista apenas para junho, na Fundação Gulbenkian, num ciclo dedicado ao piano. Entretanto, o músico espera poder também apresentar o disco nos palcos internacionais, apesar de todas as incertezas, decorrentes d a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. "Esperávamos viver um período luminoso, a seguir à pandemia, e temos uma agora uma inimaginável na Europa, com a invasão de um país soberano por outro país vizinho, o que é algo inimaginável em pleno século XXI". Mesmo assim tem esperança que "a vida vai continuar", porque, afinal e como se comprovou durante a pandemia, "é nos períodos mais negros que a arte tem mais importância"..dnot@dn.pt
Costumam apresentar-se como amigos que fazem música juntos e talvez nunca, como agora, essa descrição tenha feito tanto sentido na história do Mário Laginha Trio, ao transformarem conceitos mais ou menos abstratos como liberdade, cumplicidade ou confiança num dos mais belos álbuns de jazz dos últimos anos. Já há 15 anos que Mário Laginha (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria) tocam lado a lado, isto de forma oficial, porque os respetivos caminhos cruzados já se haviam cruzado muito mais atrás, tal como se espera das verdadeiras amizades. Enquanto Trio, já contavam com dois álbuns editados, Espaço (2007) e Mongrel (2010), muitos quilómetros de estrada e talvez quase outras tantas horas de palco, como tão bem se percebe neste novo Jangada. "Este álbum reflete um trabalho feito por este trio ao longo do tempo, com a diferença de que agora tivemos tempo para tocar, sem pressões nem obrigações além do prazer de estarmos juntos", afirma ao Mário Laginha..Apesar de grande parte das músicas terem sido criadas antes da pandemia, os sucessivos confinamentos, bem como os consequentes cancelamentos de espetáculos, acabaram por se revelar uma oportunidade para o trio, como recorda o músico e compositor lisboeta: "Logo no início de 2020 decidimos que nos iríamos passar a encontrar semanalmente, só para tocarmos juntos e só parámos essa rotina durante aquele período mais duro do primeiro confinamento. Não era para ensaiar, não havia a pressão de um concerto, nem sequer nenhuma ida acelerada para estúdio, era só mesmo pelo prazer de tocarmos juntos"..Ao longo desses meses, foram também explorando, em conjunto e "de uma forma totalmente nova", a música que Mário Laginha tinha vindo a escrever para o trio. O objetivo, confessa Mário Laginha, "era já fazer um disco a partir desse trabalho regular enquanto banda" e quando finalmente o gravaram, o resultado final estava muito mais próximo dos concertos ao vivo que das habituais sessões de estúdio. "Foi muito positivo, porque apesar de todos os temas terem sido escritos, este processo permitiu-nos aproximar bastante do som que fazemos ao vivo, com muito mais liberdade de improvisação", sublinha..Ao longo deste processo, os temas foram também ganhando "uma identidade partilhada", pois "a música nasce com a cara do compositor, mas vai-se transformando e crescendo com o contributo criativo do Bernardo e do Alexandre", acabando por ganhar também o ADN deles. "Todos os temas foram trabalhados de uma forma muito coletiva e isso sente-se no disco. Estamos mais libertos e esse é um caminho no qual quero permanecer no futuro", garante. Quanto aos troncos desta jangada, são também muitos e variados: "São as influências que trazemos do jazz, da Música Portuguesa, da Música Clássica ou da Música Africana. É com elas que navegamos". O próprio título não foi escolhido ao acaso, sendo resultado de um desafio proposto pela Fundação José Saramago, que convidou o músico a criar uma música inspirada pela obra do Nobel da Literatura. Foi assim que surgiu The Stone Raft, uma extensa faixa, com mais de 16 minutos, inspirada no livro Jangada de Pedra. "Quis que representasse um pouco o livro, a crítica à União Europeia representada pela separação da península ibérica do continente europeu, com aquela massa de pedra à deriva pelo oceano. É o tema mais longo que alguma vez fiz, porque queria que soasse um pouco como uma banda sonora para o livro", explica..O novo trabalho marca também a estreia discográfica em nome próprio de Mário Laginha pela prestigiada editora de britânica Edition Records, casa de alguns dos maiores músicos de jazz da atualidade. "Já tinha editado lá dois discos, com o saxofonista Julien Arguelles, mas fiquei sempre com a sensação que o tinha conseguido porque o Julien é artista da casa (risos). E desta vez decidi enviar o master ao Dave Stapleton, o patrão pela editora. Passado algum tempo e para grande surpresa minha respondeu-me, a dizer que adorava o disco e queria editá-lo. É muito importante não só porque é uma das melhores editoras de jazz do mundo e isso abre muitas portas, mas também por ser a casa de alguns dos meus heróis musicais, como o Dave Holland ou Chris Potter"..O álbum teve uma primeira pré-apresentação ao vivo no início do mês passado, no Auditório de Espinho e a próxima está prevista apenas para junho, na Fundação Gulbenkian, num ciclo dedicado ao piano. Entretanto, o músico espera poder também apresentar o disco nos palcos internacionais, apesar de todas as incertezas, decorrentes d a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. "Esperávamos viver um período luminoso, a seguir à pandemia, e temos uma agora uma inimaginável na Europa, com a invasão de um país soberano por outro país vizinho, o que é algo inimaginável em pleno século XXI". Mesmo assim tem esperança que "a vida vai continuar", porque, afinal e como se comprovou durante a pandemia, "é nos períodos mais negros que a arte tem mais importância"..dnot@dn.pt