Maria Osmarina Silva, que mais tarde acrescentou o diminutivo Marina ao nome oficial, nasceu no Seringal Bagaço, no Acre, há 60 anos. Trabalhou no mato cortando seringueiras, quis ser freira, sobreviveu a cinco malárias, alfabetizou-se e licenciou-se em História. Um dia decidiu fazer um curso de liderança sindical rural, foi braço-direito do líder ambientalista Chico Mendes, entrou na política, foi ministra, senadora e três vezes candidata à presidência da República. A última, em outubro, pelo Rede, quando viu ficar em primeiro lugar Jair Bolsonaro, presidente que está nos antípodas daquilo que defendeu toda a vida em política ambiental. "Este governo, com um misto de deboche e orgulho, faz o Brasil retroceder", lamenta-se ao DN..Está preocupada com os primeiros sinais dados por Jair Bolsonaro em matéria ambiental? A bancada ruralista, conhecida como Bancada do Boi, vai dar as cartas neste governo? Vejo no projeto político do presidente eleito um risco imediato para a área ambiental. Ele já prometeu desmontar a estrutura de proteção ao meio ambiente, conquistada ao longo de décadas por gerações de ambientalistas, fazendo uso de argumentos tecnicamente insustentáveis e desinformados. Chegou ao absurdo de anunciar a incorporação do Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura, depois recuou e anunciou um ministro inexperiente e com posições bastante controversas na agenda ambiental, como relativização dos dados sobre desmatamento e minimização do aquecimento global. Com isso, acaba atentando contra o interesse da própria sociedade e do país. Além disso, não considera os direitos das comunidades indígenas e quilombolas, anunciando que não será demarcado mais um centímetro de suas terras. A desistência do Brasil em sediar a Conferência do Clima da ONU em 2019 (COP25) e as ameaças de sair do Acordo de Paris expressam a visão atrasada do governo em relação ao impacto que essas decisões podem ter para o Brasil no cenário internacional, inclusive nas relações comerciais com outros países. Infelizmente, depois de décadas de protagonismo, o país caminhará para trás..O facto de o presidente eleito ter desistido da ideia de fundir agricultura e meio ambiente é um alento? A desistência da fusão, acompanhada da nomeação de um ministro que tem uma visão atrasada, é o que costumamos chamar de "trocar seis por meia dúzia". A urgência de mudarmos a forma como tratamos os recursos do planeta é um consenso disseminado na comunidade científica, numa grande parte da sociedade e do setor empresarial. É amplamente conhecido o grau de degradação dos solos, das águas, o aumento das secas e enchentes, a elevação da temperatura, a contaminação do ar e a perda de florestas e biodiversidade. Esse quadro preocupante não só afeta a vida das gerações atuais mas, sobretudo, a das próximas gerações e as populações mais vulneráveis. Infelizmente, essa tentativa de esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente caminha na direção contrária da proteção e preservação dos recursos naturais, por estar claramente orientada por outros interesses. Basta ver as recentes manifestações do presidente perguntando se os ruralistas gostaram da nomeação do novo ministro e dizendo que o facto de os ambientalistas terem criticado indica que a sua decisão foi correta. Antigamente, a postura era de buscar dialogar com quem entende de meio ambiente, para aprimorar as políticas públicas. Agora, tudo indica que é o contrário, apesar de inúmeras pesquisas mostrarem que os brasileiros são totalmente contra a destruição do meio ambiente. Os brasileiros querem prosperidade e preservação da natureza ao mesmo tempo. Costumo dizer que só somos uma potência agrícola global porque também somos uma potência ambiental, com mais de 300 milhões de hectares de terras agricultáveis, clima, água e condições favoráveis à produção de alimentos. Mas essas condições podem ser perdidas se não formos capazes de usar com sabedoria e cuidado nossos recursos naturais..Como avalia Jair Bolsonaro já fora do calor da campanha - o Brasil, e o mundo, têm razões para se preocuparem? Ainda durante a campanha, afirmei que a candidatura de Bolsonaro representava o risco de muitos retrocessos para as agendas de defesa dos direitos humanos, da proteção do meio ambiente, da defesa dos grupos vulneráveis e da própria democracia. Na política externa, os riscos provenientes das suas posições e visões já são uma realidade. Antes mesmo de assumir o cargo, já produziu desentendimentos e efeitos negativos, o mais recente é essa declaração do futuro ministro das Relações Exteriores de que o Brasil sairá do Pacto Global para a Migração, no momento em que o atual ministro assinava o documento da ONU com outros 164 países..Nas eleições, teve um resultado aquém do que as primeiras sondagens apontavam e, principalmente, do seu forte capital eleitoral nas duas outras eleições. A que se deveu isso? E está arrependida de ter concorrido neste ano? Apesar de várias alternativas apresentadas à sociedade, o Brasil teve uma campanha extremamente polarizada. Foi uma escolha pelos extremos, um lugar em que nunca me coloquei. Pelo contrário, a minha candidatura era a que mais buscava ser um espaço de mediação. Sempre digo que se é feio especular com capital financeiro, mais ainda é com "capital" político. Numa democracia, devemos oferecer aquilo em que acreditamos. Apresentei propostas para enfrentar os desafios atuais do Brasil e iniciar uma transição para um novo ciclo de prosperidade, orientando-nos pela agenda de desenvolvimento sustentável. Falei da necessidade de pacificação do país, porque, definitivamente, o caminho não é pela cultura do ódio que foi alimentada pelos extremos, tanto à esquerda quanto à direita. Respeito a decisão soberana da população, as pessoas têm o direito de escolher o que querem. Mas existem posições que, mesmo sendo derrotadas nas urnas, continuam a ser importantes e podem estar corretas. Tenho a certeza de que as causas que defendo e as ideias que tenho exposto terão de ser consideradas em algum momento pela população, pois não se pode fugir à realidade. Quanto ao resultado eleitoral, só nos cabe aceitar e seguir adiante. Em mais de 30 anos de vida pública, nunca tratei o voto como herança ou como "capital político". O voto do cidadão é livre. E eu já tinha plena consciência das dificuldades que iria enfrentar nessas eleições, decidi candidatar-me por coerência e compromisso com as propostas que defendo. Preferi não me omitir..O fenómeno das fake news e da "polarização tóxica", como lhe chamou, contribuíram para o seu resultado? Temos muitos elementos para analisar e não quero ter uma visão reducionista. Sou alvo de fake news desde 2014. Espalharam e continuam espalhando muitas mentiras por aí, sobre mim e a minha família. Mas o que vimos nessas eleições foi uma avalanche de notícias falsas, uma maciça distribuição de conteúdo político enganoso para manipular milhões de brasileiros, com ataques aos candidatos, à imprensa, com mensagens que fomentaram o ódio a grupos vulneráveis e até colocando em dúvida a segurança das urnas eletrónicas. Houve um aprimoramento dessa indústria caluniosa com finalidades eleitorais. Ao contrário das denúncias reveladas pelos media sobre outros candidatos, a minha campanha não usou robôs, perfis falsos ou empresas para impulsionar conteúdo mentiroso. Fizemos uma campanha limpa, com pessoas reais tentando qualificar o debate que era necessário para o Brasil. Não por acaso, a primeira decisão do Tribunal Superior Eleitoral para retirar fake news nas eleições deste ano foi a meu favor. Durante a campanha, também entrei com uma ação de investigação no Tribunal Superior Eleitoral contra o então candidato do PSL e o seu vice para apurar um ataque cibernético ao grupo no Facebook Mulheres Unidas contra Bolsonaro, depois de uma invasão que alterou o nome para Mulheres com Bolsonaro. Também tivemos outras ações contra peças audiovisuais plagiadas da minha campanha e sendo utilizadas por campanhas adversárias. Esse será cada vez mais um desafio para as instituições democráticas. Aumentou a velocidade e a amplitude da disseminação de mentiras, que já não conseguem ser reparadas politicamente e juridicamente em tempo de impedir um estrago maior..Já disse que vai ser oposição forte ao atual governo. E teve reunião com Ciro Gomes (PDT). Rede, PDT e outras forças tencionam unir-se no Parlamento e não só para terem uma voz mais forte? Temos como convergência a construção de uma oposição democrática e firme para defender as instituições republicanas e democráticas, as populações mais vulneráveis e os interesses do país, em parceria com a sociedade, sem que haja uma ansiedade de protagonismo entre partidos e lideranças políticas. Estamos conversando nesse sentido, e essa construção também precisa ocorrer no Congresso Nacional, para que tenhamos na Câmara dos Deputados e no Senado uma ação consistente e independente. Sempre digo que, tendo princípios e valores duradouros, é perfeitamente possível fazer alianças pontuais. Acredito que essa união pode ajudar o Brasil a superar os equívocos do atual modelo de desenvolvimento em que vivemos, colocando em primeiro lugar os interesses da população e do país, em vez do jogo de projetos de poder ultrapassados, predadores, que colocam a hegemonia de grupos e partidos acima de tudo..E onde cabe o PT nisso? Ou não cabe? O nosso percurso político e as nossas definições programáticas não tem nenhuma identidade com a visão exclusivista do PT, que sempre quer hegemonizar o processo político no campo dito progressista, mas sem fazer nenhuma autocrítica quanto aos graves erros que cometeu, sobretudo os de natureza ética, em função do comprovado envolvimento de suas principais lideranças em graves crimes de corrupção. Não temos uma visão sectária, dialogaremos com as forças políticas, parlamentares, partidos, lideranças da sociedade, organizações e movimentos da sociedade civil que compartilharem princípios éticos e se colocarem em defesa dos interesses do país..Em 2014, acabou por apoiar Aécio Neves no segundo turno. Agora, Fernando Haddad. Essas posições, primeiro contra o PT, agora ao lado do candidato do PT, vão além do partido e têm que ver com afinidades pessoais também? Não trato a política como uma questão pessoal. Sempre fiz e faço as minhas declarações em cima de propostas e no respeito à minha consciência e valores. Em 2014, com as informações que tinha à época, declarei meu voto no candidato do PSDB a partir de um compromisso assumido pelo candidato Aécio Neves com a continuidade de políticas sociais relevantes para o combate às desigualdades, a proteção dos povos indígenas e das populações tradicionais. Neste ano, votei em Fernando Haddad por considerar que sua eleição traria menos riscos de retrocessos imediatos e de agressões contra a democracia e contra esses mesmos setores vulneráveis da população. Desse modo, em ambos os casos, fiz o que se deve fazer num segundo turno: optei pela alternativa que apresentava prejuízo menor do que a outra nas questões que defendo, como o combate à corrupção, a proteção da democracia, do meio ambiente, dos índios, do desenvolvimento sustentável..2022 está a larga distância, mas equaciona a quarta candidatura? Lula só ganhou à quarta tentativa... Estou com 60 anos e já contribuí como candidata à presidência em três oportunidades. Com o resultado das últimas eleições tirei o peso da cobrança do "bónus eleitoral" de 2010 e de 2014, que de certa forma recaía sobre mim. Ainda é cedo para fazer uma avaliação sobre isso, a única coisa que eu sei é que continuarei a minha atuação, como sempre fiz, por justiça social, defesa dos direitos humanos, democracia e sustentabilidade. Isso não depende de candidatura, é a minha trajetória de vida. E penso que o Brasil pede uma ação política menos centrada na lógica do poder pelo poder, da eleição pela eleição..No dia 22 de dezembro assinalam-se 30 anos da execução do ambientalista Chico Mendes. Como era sua relação com ele, que memórias guarda? Conheci o Chico Mendes quando tinha 17 anos e esse encontro mudou a minha vida. Nessa época, eu sonhava em ser freira e vivia num convento em Rio Branco, no Acre. Um dia, incentivada por um cartaz afixado na igreja, decidi fazer um curso de liderança sindical rural, ministrado pelo Chico e pelo teólogo Clodovis Boff. Depois disso, comecei a compreender que a minha fé não era para ficar encerrada em quatro paredes. Andei e trabalhei com o Chico até ele ser brutalmente assassinado. Permanece viva em minha memória a imagem dele, com projetos de desenvolvimento comunitário nas mãos, nos corredores das instituições, pedindo apoio de cientistas, ambientalistas, sindicatos, partidos políticos, órgãos de governo. O Chico ouvia a todos, buscava o diálogo, valorizava a informação e unia a ciência aos conhecimentos tradicionais das comunidades. Não se afastava dos companheiros da floresta, com quem mantinha uma relação não apenas de fraternidade mas também de respeito à democracia no debate e nas decisões. Esses aprendizados são lições de vida, que valem ainda mais agora, quando há uma negação cega do que está dizendo a ciência, um tratamento inadequado às populações tradicionais e uma perda da capacidade de diálogo entre diferentes..E ele, se fosse vivo, estaria preocupado com o atual momento ou, apesar de tudo, feliz por alguns avanços na questão ambiental nestas três décadas? Os avanços que obtivemos na agenda ambiental no combate ao desmatamento, no aprimoramento da legislação e das estruturas de governança, na criação de unidades de conservação, no papel de destaque que o Brasil alcançou nas negociações multilaterais, na valorização dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais, assim como vários outros, são desdobramentos da luta iniciada por Chico. Na sua atuação, a justiça social andava junto com a proteção ambiental, a economia junto com a ecologia. Chico Mendes talvez tenha sido uma pessoa que viveu na prática e traduziu o que o filósofo francês Jean-Paul Sartre disse: não somos o resultado daquilo que o passado fez connosco, mas do que fazemos com o nosso passado. A luta de Chico permanece viva e seguirá como um grande legado na resistência aos retrocessos que têm sido anunciados, com um misto de deboche e orgulho, pelo novo governo.