Marília dos Santos Lopes: "Não há tabus, mas há temas menos abordados na História de Portugal"

<em>A</em> <em>História na Era da Des(Informação)</em> foi agora publicado pela Universidade Católica Portuguesa e o DN falou com a coordenadora da obra, a historiadora Marília dos Santos Lopes, sobre o uso e, sobretudo, o abuso dos factos históricos para procurar justificar fins políticos.
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O título deste livro que coordenou é A História na Era da (Des)Informação. Mas estou a ler uma biografia do cartaginês Aníbal e um dos problemas para os historiadores contemporâneos é que as fontes são os romanos, que distorcem os factos em seu favor. Portanto, a desinformação não foi nada que Vladimir Putin inventou quando usou a História, como escreveu, para justificar a invasão da Ucrânia, pois não?
Não, de modo algum. Não é um fenómeno de hoje, não é um fenómeno só contemporâneo. Essa é a importância da História, que vem corroborar que é preciso conhecer os antecedentes, os acontecimentos, os factos, para melhor compreendermos o presente e não chegarmos a conclusões erradas, como a de que a desinformação só acontece hoje.

Neste caso, quando o presidente russo usa a argumentação histórica para justificar a invasão, dizendo que a Ucrânia nunca existiu, não está a escrever a história como vencedor, está sim a interpretar a história para que ela aconteça como é seu desejo?
Sim, Putin tem uma visão para o seu país, para a sua nação, e há uma narrativa histórica que vem já anteriormente e que ele quer ver continuada. Putin quer acima de tudo vencer, e, portanto, usa a história para justificar e resolver erros que ele considera que houve e que não deviam ter ocorrido.

Quando um líder usa a história para justificar ações, é mais para consumo interno ou é também para se justificar aos olhos do mundo?
Há diferentes casos, há diferentes situações, mas usando o exemplo de que estávamos a falar, de Putin, tanto pode ser para justificar a invasão da Ucrânia e levar as pessoas na Rússia a mobilizarem-se, como também para mostrar ao resto do mundo aquilo que é a sua posição e a sua decisão.

Os historiadores devem intervir neste debate político, quando sentem que a história está a ser distorcida ou que alguns factos estão a ser enfatizados por um dos lados?
Devem, no sentido de estudar as coisas, de mostrar mais documentação, mais trabalhos, mais perspetivas, que tornem estes temas mais conhecidos. A história não é de um grupo, a história é para todos, portanto, essa reflexão deve ser conhecida e é nesse sentido que é importante. O historiador tem, pois, responsabilidade, tem responsabilidade no sentido de mostrar, de trabalhar interpretações, reflexões, factos que não eram conhecidos. Trata-se de assumir esta responsabilidade.

Na sua introdução ao livro, aponta um exemplo curioso que é, quando há quase uma unanimidade na Europa e no espaço transatlântico face à atitude a ter perante a Rússia, a Polónia decide pedir à sua aliada Alemanha indemnização pelo que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui mais uma vez percebe-se que há uma tentação de usar a história para ganhos políticos imediatos. No seu caso, que fez mestrado e doutoramento na Alemanha, quando vê países vizinhos com uma história comum complicada, como são a Alemanha e a Polónia, abrir estas feridas da história é sempre complicado?
Essas são questões complexas e essa é a grande dificuldade, porque a história não é algo que seja rápido, que apresente uma ideia feita e que seja apenas uma possibilidade, uma única visão. Portanto, essa é a dificuldade. E depois, também gostaria de salientar que, muitas vezes -- e na introdução até recorro ao historiador francês Marc Ferro para falar no ressentimento --, muitas vezes gostaríamos que as coisas fossem mais óbvias, racionais, lógicas, mas o ser humano é composto de diferentes perspetivas, emoções, de feridas também, de anseios, de medo. E esses medos, esses anseios, essas feridas do passado têm, muitas vezes, ressonâncias no presente.

Mas supostamente a grande missão da União Europeia até seria ajudar a ultrapassar esses ressentimentos, fazer os países ultrapassarem ódios de outras eras.
Sem dúvida, mas muitas vezes, como confirmamos com a história da Europa, não são ressentimentos que desaparecem em 10 anos ou 20 anos. Sabemos, que a pessoa pode mudar rapidamente, de aparência, de aspeto, mas depois a sua forma de pensar não é algo que seja muito rápido a mudar.

Insistindo na sua experiência na Alemanha, o país conseguiu fazer um exercício histórico muito interessante, que é assumir o que foi o nazismo, pedir desculpa, inclusive numa cerimónia emblemática na Polónia em 1970 com o então chanceler Willy Brandt, e lidar com a sua história, a parte mais negativa, inclusive ensiná-la na escola às crianças. Isto é um pouco único, não é?
De facto é um processo muito importante e assim que cheguei à Alemanha sempre notei isso, o tema da guerra, do nazismo era um tema recorrente, não só nas instituições que frequentei, na universidade, mas também na população, havia essa necessidade de falar, de procurar compreender. Mas também se sentiam dificuldades de lidar com esse passado. Havia muitas feridas, não era fácil, mas os alemães estavam convictos de que esse era o processo necessário para seguir em frente.

Há muitos historiadores alemães a investigarem os crimes de nazismo, até a tentar perceber a cumplicidade de uma grande parte da população, sem escamotear a verdade. Isso é também quase único?
Sim, exatamente, porque, como digo, havia essa convicção de que, de facto, não poderia voltar a existir um período como aquele que tinha sido de uma barbaridade tão monstruosa que era necessário falar dela. Ainda hoje sentimos a necessidade de divulgar a documentação, nomeadamente os testemunhos dos últimos sobreviventes que ainda vivem e que vivenciaram esta barbaridade, a fim de alertar e nunca cair no esquecimento. Porque, como falávamos há pouco, muitas vezes os historiadores, os políticos e a população em geral, um pouco por todo o mundo, querem exaltar aquilo que foi positivo, mas isso é também muitas vezes, como vimos, contraproducente, porque ao esquecer o que é negativo estamos a branquear, a falsear, aquilo que aconteceu e se calhar a fazer com que mais tarde não se tenha uma noção daquilo que de facto ocorreu, do que foi a história.

Há um livro muito interessante que saiu agora, chamado Pátrias: uma história pessoal da Europa, de Timothy Garton Ash, que aliás veio a Portugal a convite da Universidade Católica, em que ele usa a sua experiência pessoal de europeu para contar muitos episódios. Por exemplo, fala de aldeias na Alemanha, onde as pessoas que viram chegar os ingleses no final da guerra como ocupantes, hoje conseguem ter um relacionamento saudável com os descendentes desses soldados estrangeiros, que vão lá visitar o sítio onde os pais estiveram; mas ao mesmo tempo, diz ainda o autor, há narrativas, como por exemplo na Polónia, de que já falámos em relação à Segunda Guerra Mundial ou até na Hungria, em que os políticos defendem que é preciso ajustar contas com a história, indo um século atrás. Por exemplo, a Hungria está sempre a dizer que no final da Primeira Guerra Mundial perdeu dois terços do seu território e que foi vítima de um ato de injustiça. Os historiadores, muitas vezes, têm de lidar com esta pressão de serem solidários com as queixas das suas pátrias. É difícil?
O historiador procura, embora saibamos que é muito difícil, ser o mais objetivo possível para transmitir a documentação, interpretações, vozes silenciadas. Há aqui um aspeto que tem de se ter em consideração, que é o facto de a Polónia e a Hungria terem percursos diferentes da Europa Ocidental no pós-guerra: a experiência da ocupação soviética e as tentativas falhadas de resistência ao longo de 40 anos. Isto também é um aspeto muito estruturante que temos de ter em consideração quando agora olhamos para a UE. E o próprio Garton Ash fala desse grande problema atual, que é a diferença entre uma Europa Ocidental e uma Europa do Leste.

É curioso que Garton Ash faz várias referências a Portugal. Há uma em que ele diz que Portugal teve um império até 1975. Depois, há uma outra referência que faz por causa da imigração, que é Ceuta, cidade espanhola, mas que foi conquistada pelos portugueses em 1415 e que foi, diz ele, a primeira colónia europeia em África. Na sua experiência como historiadora, e também de ter vivido fora, como é que é vista a História de Portugal e esta história imperial de Portugal?
Há naturalmente pessoas que têm interesse pela Península Ibérica em geral e por isso têm um conhecimento de Portugal. Mas, de facto, quando fui para a Alemanha estudar, em 1983, muitas pessoas nem sequer sabiam onde é que ficava Portugal. Mesmo académicos chegaram a perguntar se ficava em África. Portanto, havia um grande desconhecimento sobre Portugal e de uma forma geral sobre a história portuguesa.

Nós portugueses muitas vezes quando falamos da nossa história achamos que ela é grandiosa, mas, independentemente da real importância das grandes viagens dos Descobrimentos, há muita gente que hoje ignora isso, e até desvaloriza?
De modo algum, não há no estrangeiro essa ideia de uma história grandiosa de Portugal. Pelo contrário, há até uma ideia crítica, por exemplo por causa da Guerra Colonial. Esse desconhecimento que se alterou bastante nos últimos anos, tem a ver com um país que durante muito tempo, por causa do regime, também ficou longe dos círculos internacionais, dos contactos, das editoras, das várias instituições e, portanto, não tinha uma presença. E mesmo alguns anos depois do 25 de Abril, quando fui para a Alemanha, não havia muitos livros sobre a História de Portugal traduzidos em inglês, ou outras línguas, e ainda menos em alemão. Esse foi sempre também um entrave. Hoje é diferente esta divulgação da nossa história. Já temos um contacto entre jovens, o Erasmus, já temos redes internacionais de investigadores, de académicos, é uma situação completamente diferente.

Falou do 25 de Abril, e a Revolução apanhou-a no início do Secundário. Sentiu o ensino da História mudar nessa altura nas escolas?
Sim, houve mudanças, não só na História, mas também até nos autores que líamos em português. Portanto, senti perfeitamente isso. Os temas que abordávamos, logo nos primeiros anos começámos a tratar a emigração, tratar alguns temas que nunca eram abordados anteriormente. Portanto, havia aí, realmente, uma preocupação dos docentes, dos professores, que sentiam necessidade de nos dar a conhecer autores que antes não eram estudados, textos contemporâneos sobre outras temáticas.

Há pouco falámos da Alemanha lidar com a memória do nazismo, mas também há um grande debate sobre Portugal lidar com o seu papel no tráfico transatlântico de escravos. Mas, ao mesmo tempo, há duas situações, por exemplo, em relação à escravatura, que fixei, que é a Al Jazeera emitir uma história da escravatura, mas não o primeiro episódio, que fala da escravatura árabe. E depois, há pouco tempo, entrevistei o diretor do Smithsonian, pela primeira vez um afro-americano, e perguntei-lhe se alguma vez tinha lidado com a questão da escravatura pelos próprios africanos. E ele contou-me que, um dia, foi ao Gana e visitou o Reino de Ashanti, que em tempos vendia escravos aos europeus, e quando levantou a questão ficaram ofendidos. Os povos reconstroem a história à medida daquilo que querem justificar atualmente?
Sim, há pouco estávamos a dizer que a narrativa histórica vai sendo construída com uma determinada interpretação, uma determinada visão, tentando esquecer aquilo que é menos positivo, que não é favorável. O historiador tem a obrigação de ser objetivo, de respeitar as diferentes visões e, neste sentido, procurar sempre de novo contar o que realmente aconteceu.

Mas com Portugal, por exemplo, não há tabus em nenhum dos temas. Mesmo neste livro, temos aqui temas abordados como os negros do Sado. Ou seja, não há tabus hoje para um historiador em Portugal?
Agora, procura-se estudar estes temas, mas é agora. O tema de que está a falar, é tratado pela professora Isabel Castro Henriques, que tem vindo nos últimos anos a fazer um grande trabalho para estudar a presença africana em Portugal. Há aqui ainda uma enorme necessidade de aprofundar estas temáticas. E, por isso, vemos que há temas que ainda não foram suficientemente abordados, por vezes até, se calhar, silenciados. E, portanto, é necessário fazer mais investigações. Não há, não deve haver tabus, mas há temas menos abordados na História de Portugal, temas que é imperioso estudar.

Esta coleção Povos e Culturas começou como uma revista e agora já vai no quinto livro. A ideia, no fundo, é que os investigadores ligados à Católica, e não só, possam publicar investigações em áreas diversas. Quer realçar alguns trabalhos?
São publicações do Centro de Estudos de Povos e Culturas de Expressão Portuguesa (CEPCEP). É um centro que já vem há 40 anos a trabalhar e sempre com esta ideia de informar, esclarecer, através das suas publicações sobre temáticas atuais, relevantes, contemporâneas, e trazer estas temáticas à discussão. E é isso também que agora, depois dos anos em que a revista era dirigida pelo engenheiro Roberto Carneiro e o historiador Artur Teodoro de Matos, se procura manter sob a direção do professor Fernando Ilharco. E daí os últimos volumes também terem vindo a tratar temáticas como o Património Cultural e Transformação Digital, a Sociedade do Cuidado, ou as Lições da Pandemia. Neste livro sobre a história na era da desinformação houve também a preocupação de abrir o debate sobre a comunicação hoje e no passado: sobre temas menos abordados ou mesmo silenciados.

Há quem diga que o jornalista é o historiador da atualidade e muitas vezes os jornais acabam por servir como fonte para o estudo pelos historiadores mais tarde. Mas muita da informação já não é veiculada pelo jornalismo, mas sim pelas redes sociais, muitas vezes sem qualquer tipo de controlo. Isto significa que há muitas mistificações, muita propaganda, muita desinformação que circula. Como é que o historiador, no futuro, vai lidar com isto?
No futuro e, se calhar, já no presente. Daí o livro querer estimular esta reflexão. Há pouco falávamos do parcelamento de um ângulo particular da história dos romanos ou de outros períodos históricos. Nessa altura os intervenientes e agentes da história eram muito menos. Hoje, com as redes de comunicação, há muito mais gente a produzir informação. Essa é a grande diferença, é esse expandir da informação que levanta grandes e novos desafios à investigação, à reflexão e ao papel do historiador.

leonidio.ferreira@dn.pt

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