Maria José e sr. Pinguinha: uma história de amor revisitada no Museu

Na primeira quarta-feira de cada mês, um grupo de reformados de Loulé desloca-se ao Museu Municipal para ajudar a equipa responsável pelo acervo fotográfico a identificar rostos captados em imagens que contam a história da cidade algarvia entre os anos 20 e os anos 70 do século XX.
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A sessão começa a meio gás, o grupo oferecendo resistência como um corpo que precisa de aquecimento antes da prática desportiva. A historiadora Helga Serôdio, responsável pelo arquivo fotográfico do Museu Municipal de Loulé, projeta imagens de uma reportagem feita em janeiro de 1974 no baile da Escola Comercial e Industrial. A geração retratada, cabelos e vestidos compridos, é mais nova do que a audiência, constituída por reformados com mais de 70 anos de idade. A historiadora utiliza uma bengala para apontar os rostos que vão surgindo, mas sem grande sucesso. Os jovens têm entre 14 e 15 anos e são quase desconhecidos para os presentes na sala.

Maria Helena Machado ensinou turmas de raparigas dessa mesma escola até 1972. Agora com 77 anos, tenta ajudar.

"Algumas dessas raparigas foram minhas alunas, mas a minha cabeça... Estas festas faziam-se anualmente. Houve um ano que até foram lá os Sheiks," diz.

Apesar de não ter identificado ninguém, o comentário de Maria Helena ajuda a acordar o grupo. A sala começa num burburinho de referências trocadas e nomes debaixo da língua que teimam em não sair. Há quem garanta que conheça a rapariga do meio, saiba até dizer onde vivia, acabando por se declarar incapaz de recordar o nome ou o apelido.

"Ela é professora. Vocês sabem quem é. É casada com um moço da Beira. Oh pá... não me consigo lembrar do nome da rapariga," diz Felismina Pires.

"Faz lembrar a irmã do Abilinho," diz alguém no meio da sala. "Se não é ela, é parecida," continua.

As funcionárias do Museu servem bolo rei e chá de gengibre e de limão.

Na primeira quarta-feira de cada mês, uma pequena sala do museu enche-se com um grupo de reformados que nos últimos cinco anos foi ganhando o hábito, e o vício, de ajudar Helga Serôdio a cozer uma manta a partir dos retalhos que são as fotografias exibidas durante as sessões. Desde 2014 que Helga e a equipa selecionam mensalmente cerca de 80 ou 100 fotografias, entre retratos de homens, mulheres, crianças, famílias ou reportagens de momentos da vida cultural de Loulé desde os anos 20 do século XX.

"Na informação que recolhemos durante estas sessões conseguimos elencar estabelecimentos comerciais, a sua localização, quem eram os proprietários, conseguimos apurar as famílias de Loulé e os cruzamentos das famílias umas com as outras, as alcunhas, as profissões," diz Helga Serôdio.

A ideia surgiu à historiadora depois de o Museu ter promovido uma sessão de identificação das fotografias da coleção dos estúdios do fotógrafo Padre Guerreiro, um espólio de cerca de 70 mil imagens retratando momentos marcantes da comunidade louletana entre as décadas de 20 e 40 do século XX. A coleção foi doada ao Museu em 1992, mas a equipa responsável pelo acervo fotográfico só começou a converter os negativos em positivos a partir de 2009, depois da aquisição de um scanner que permitiu fazer esse trabalho.

"Nesse momento tive o clique de que deveríamos devolver as coleções à comunidade," diz Helga Serôdio, que se inspirou no trabalho desenvolvido pelo Museu de S. Brás de Alportel, que faz um trabalho regular de recolha de património fotográfico.

Além disso, diz a historiadora, quis-se também "aproximar a comunidade do Museu" Municipal de Loulé, tradicionalmente destinado aos turistas.

"O Museu é um local onde se recolhem e se guardam as memórias da comunidade e um museu que faz esse tipo de trabalho quer a comunidade por perto. Estamos a conseguir o que pretendíamos - o público de Loulé está a considerar este espaço como um ponto de encontro privilegiado," diz Helga Serôdio.

É precisamente isso que lembra a sala do Museu onde decorrem as sessões "Desculpe, como me chamo?". No dia 9 de janeiro, a historiadora acolheu de volta o grupo, depois de uma interrupção de vários meses em que a equipa se concentrou em trabalhar um novo espólio, o do fotógrafo Manuel Guerreiro de Brito, que fotografou ativamente Loulé e a sua comunidade nos anos 50, 60 e 70 do século passado.

Depois do chá, o grupo ganha alguma energia, que num primeiro momento usa para refilar contra a mudança dos espólios.

Sentado ao lado da professora Maria Helena Machado está Vitor, que não quer dar o apelido, mas que está impaciente por reconhecer alguém.

"Qual é o Abilinho a que se estão a referir," pergunta.

E dois ou três ao seu lado: "Aquele que vendia o jogo do Louletano".

Vitor acusa a frustração e acaba por libertar um desabafo.

"Eu vim para as fotografias do Padre Guerreiro. Eu fui para Setúbal em 1959, isto a mim não me diz nada," protesta.

A historiadora Helga suspende a exibição da reportagem do baile, substituindo-a por retratos dos anos 60. Um desses retratos prende a atenção de Vitor, que se endireita na cadeira.

"Este sei quem é. É o Vitorino, que era um senhor muito vivido para a altura. Eu era um miúdo ao pé dele, mas sabia ver o andar, o calçar," diz Vitor.

"Era um Don Juan," diz uma mulher na sala.

"Era sim senhor. Era homem de bailes e de raparigas," insiste Vitor.

A fotografia seguinte, um retrato de família, presenteia-lhe o esforço, devolvendo-lhe o entusiasmo pelo jogo.

"Aquela pequena que está de véu branco foi o amor do meu irmão. É a Belinha. Moravam no Alto de S. Domingos. Era o amor dele e deixou de ser. É como tudo," diz.

A história de Vitor faz a sala avançar, sendo fácil aos restantes reconhecer pelo nome o pai, a mãe e o irmão de Belinha. Nesse momentos lembram-se todos de que o irmão da Belinha é o pai "da rapariga das telenovelas". Estão a referir-se à atriz Vitória Guerra.

Ao fim de uma hora de sessão entra uma mulher cerca de 15 anos mais nova do que os presentes. Reconheceu o baile de finalistas da sua turma na fotografia promocional que o Museu disponibiliza mensalmente à Agenda Cultural para promover a próxima sessão e decidiu vir pela primeira vez. De uma assentada, Maria Florindo Francisco, uma empresária de 60 anos, identifica todos os amigos e colegas pelo nome. No momento exato em que está a identificar a amiga Hortense, que não vê há muitos anos, a mesma entra na sala. "Foi uma casualidade," dizem as colegas, que já se tinham redescoberto pelo Facebook e estavam em vias de combinar um café para se reencontrarem. O evento do Museu serviu de ponto de encontro. Liderando agora o trabalho de identificação, as duas explicam que a turma havia organizado aquele baile para financiar a viagem de finalistas desse ano, à Madeira.

Antes de se despedir, Helga Serôdio diz aos participantes que podem vir durante a semana, fora das sessões, para continuar a ajudar à identificação das fotografias guardadas em espessos dossiers conservados nas estantes da sala.

Maria José Viegas manteve uma presença de matriarca silenciosa durante grande parte da sessão. Vem desde o primeiro encontro. Atrás dela vieram e continuam a vir amigas. A bengala usada todas as sessões como apontador, pertence-lhe. A historiadora foi puxando por Maria José, mas não foi fácil. Em várias ocasiões parecia que a mulher de 78 anos se lembrava de um nome, acabando por desistir e culpando a cabeça que já não a ajuda.

"Venho desde o início. Talvez me tenha esquecido de vir a uma das sessões. Eu conheço toda a gente e se a Helga sonha que eu não venho põe-se doente," diz Maria José Viegas, falando com autoridade de uma veterana, não deixando esquecer o seu estatuto nestes encontros, mesmo que a memória a atraiçoe.

Helga Serôdio recorre ao caso de Maria José para falar do efeito terapêutico destes encontros.

"Ela em 2014 tinha uma memória prodigiosa e tem vindo a perdê-la. Sinto que quando ela vem aqui trabalha a memória, puxa por ela. Às vezes ao fim do dia liga-me a dizer que se lembrou de um determinado nome," diz Helga Serôdio. "Estamos a construir memória futura enquanto trabalhamos e exercitamos a memória," continua a historiadora.

Um dos episódios que Helga lembra com mais carinho foi proporcionado precisamente por Maria José, que a historiadora classifica como "uma marota".

Num certo momento, Maria José pediu a Helga para projetar uma fotografia que a louletana guardava em casa há muitas décadas. Era a fotografia de um baile de há 50 anos onde dançavam a amiga, Rosa, e o namorado da altura, o Sr. Pinguinha, figura presente em muitas sessões. A amiga Rosa vive em Lisboa, mas para essa sessão, Maria José pediu-lhe que a visitasse em Loulé e a acompanhasse ao encontro no Museu. Nada lhe disse sobre o que havia planeado com Helga. Com o Sr. Pinguinha numa ponta da sala e a amiga na outra, Maria José piscou o olho à historiadora, sinalizando que era o momento de exibir a dita fotografia. Reconhecendo-se na imagem projetada na parede, o Sr. Pinguinha levanta-se de imediato. A amiga Rosa fez o mesmo e os dois ex-namorados reencontram-se pela primeira vez em décadas, abraçando-se com ternura e emoção.

"O reencontro parou por ali porque a esposa do Sr. Pinguinha estava sentada ao lado do marido, mas foi um dos momentos altos destes encontros," lembra, divertida, Helga Serôdio.

Maria José não se lembrou de contar esta história ao DN antes de se despedir do grupo no final da primeira sessão do ano de "Desculpe, como me chamo?" Não parece do tipo de exibir-se de tal ardil, preferindo deixar sementes, semeando silenciosamente o caos e a confusão.

"Vem aí o meu álbum de casamento. A menina Helga está a preparar-se para me fazer a surpresa, que eu já percebi," diz Maria José.

Fica a dica para a próxima sessão.

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