Maria João: "Uhummmm... iiaahmm... uuooohhh..."

Mais de 200 pessoas estavam hoje às 10.00 no Grande Auditório no Centro Cultural de Belém (CCB) para ouvir falar de jazz, mas a cantora Maria João surpreendeu-as com um aquecimento geral.
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A sexta edição da Conferência Europeia de Jazz, On The Edge, começou hoje em Lisboa. O programa está carregado de debates sobre o cenário desta música e as novas tendências do setor e as duas centenas de participantes que vieram de várias partes do mundo estavam à espera de uma primeira nota habitual nestes eventos. Mas estavam na cidade europeia mais fashion e foram surpreendidos com a introdução biográfica da cantora de jazz Maria João.

A primeira 'nota' tocada por Maria João começou com a confissão de que os vocalistas de jazz são pessoas sós e que ela própria é muito bem comportada, tanto assim que mal acaba o espetáculo vai logo deitar-se. Em seguida avisa que vai mostrar como a voz de uma mesma pessoa pode ser diferente e põe um pequeno filme a rodar no ecrã gigante atrás de si. Inesperado, ouve-se a sua voz mas o que se vê é o fundo da boca, a língua e o aparelho vocal, tudo filmado extremamente de perto, repetindo a mesma frase em vários tons de voz.

O pessoal do Jazz sentiu-se logo em casa e bem recebido por está "negra/branca e moçambicana/portuguesa" que como era gordinha sofreu em pequena sofreu bulling a que respondia com o punho às várias provocações: "A minha ambição para ser uma pessoa feliz superou qualquer crise". Acrescenta que só sabia duas canções em pequena mas ao ouvir uma colega cantar descobriu que tinha uma voz: "E quando um músico de jazz se apercebeu, levou-me ao Hot Club."

Maria João continua a contar que nunca teve aulas de canto nem ninguém que lhe dissesse como era a melhor forma de cantar: "A prática de aikido ajudou-me a trabalhar o diafragma e a descoberta de Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Betty Carter fizeram o resto." Para não perder o pé na atualidade, fala de discriminação: "Já que se fala muito hoje em dia da dominação das mulheres, no jazz eu nunca senti isso."

Ia a biografia ainda a meio quando Maria João mandou toda a gente levantar-se para explicar como é que se canta: "Todos de pé... estamos a respirar normalmente... é tão bom não é? agora podem mexer os pés..." E pouco depois lá estavam duas centenas de participantes a mexer as ancas, a dobrarem-se, a levantar as mãos em arco e a saltar entre as filas das cadeiras: "Se não tiverem o corpo livre, não podem cantar bem."

A seguir, Maria João pede que a acompanhem no aquecimento da voz: "Digam como eu: uhummmm... iiaahmm... uuooohhh... iiiiiiaa... aattta... Bonito, estou feliz convosco, mais uma vez: ehhhheeehhh..." Novo pedido: "Façam uma melodia agora com aeiou... usem a vossa criatividade enquanto aquecem as vozes." E lá surge um aeeeeiiooooouuuuu generalizado e a reação feliz de Maria João: "que lindo coro, e agora as consoantes..." E as pessoas continuaram a soltar-se...

Após um primeiro discurso bastante diferente, até a organizadora se mostrou espantada, Maria João fez uma declaração final em que considerou que a música está diferente, sobre o que é viver sem um agente que arranje concertos: "Dobro-me perante os músicos que mantém a sua identidade, os que são originais e não se deixam devorar pelo mundo que os rodeia, por muito inspirador que ele seja".

A entrada de Maria João marcou o rumo do primeiro debate que se seguiu, mesmo que fosse menos entusiasmante. Moderado por Francesco Martinelli e com intervenções de profissionais do jazz: Pedro Cravinho falou sobre a história do jazz português, a importância do fator geográfico e do peso da política do passado, bem como o crescimento das influências estrangeiras no jazz português. Rui Eduardo Paes explicou que a partir dos anos 70 cresceu a ligação do jazz português com o que se fazia na Europa, dando os casos de Rão Kyao, Carlos Barreto e Carlos Zíngaro, entre outros, e questionou a profissionalização dos músicos portugueses apesar do isolamento. Pedro Costa referiu a falta de um mercado nacional e a necessidade dos músicos portugueses viajarem para o estrangeiro em busca da afirmação. Pedro Guedes destacou o papel das novas gerações que viajaram nos últimos tempos para a criação de uma nova fornada de músicos profissionais. Beatriz Nunes, que está a começar um projeto enquanto líder de banda, acredita que a profissionalização no jazz está a crescer e daí resultam propostas musicais mesmo que o mercado não acompanhe o crescimento do setor e dos músicos.

A cerimónia de boas vindas aos jazzistas contou com intervenções da vereadora da Cultura Catarina Vaz Pinto, que destacou a importância da Conferência Europeia do Jazz para os músicos portugueses que mantém um diálogo com os de África e América do Sul. Elísio Summavielle, diretor do CCB, agradeceu a força de combate que o jazz traz à sociedade.

A última nota do primeiro dia vai ser tocada pela Orquestra Jazz de Matosinhos

Programação

Até sábado a programação conta ainda com um lista de eventos musicais e debates:

Hoje: Painel sobre a Cidade e o Jazz com a música espanhola Azucena Mico.

Painel sobre Perspetivas Globais com Adam Schatz (EUA), Jan Bang (Noruega), Paul Mason (Austrália), moderados por Jan Ole Otnæs (Noruega).

Painel sobre Pesquisa no Jazz com Tony Whyton (RU)

Painel O que vem por aí, com vários protagonistas do jazz europeu.

Painel sobre Jazz, Meio ou Mensagem, a perspetivar as tendências com Scott Cohen (RU)

Dia 15: Painel sobre inteligência artificial na composição e na improvisação por François Pachet (FR).

Painel sobre novas tecnologias e os efeitos na indústria com François Pachet, Kelly Snook (EUA), Scott Cohen (RU), moderado por Kenneth Killeen.

Showcase de Pedro Melo Alves - Omniae Ensemble

Concerto com jovens músicos da Estónia e da Dinamarca com músicos do Hot Clube de Portugal Escola de Jazz.

Lançamento do livro The History of European Jazz - The Music, Musicians and Audience in Context.

Showcase com Quarteto Beatriz Nunes.

A primeira Conferência Europeia de Jazz foi em 2014 e desde então os promotores do encontro juntam ao debate profissional a presença de vários artistas do país anfitrião (ver lista em baixo) num festival. A agenda conta com grupos de debate a alto nível e workshops, sessões em streaming para músicos da área e visitas culturais.

A escolha de Portugal permite aos músicos nacionais uma grande exposição aos profissionais da indústria que se deslocam a Lisboa e, por norma, criam novos projetos artísticos no continente europeu, colaborações e novas relações com promotores do setor, bem como a partilha de experiências com as novas tendências que estão a verificar-se em todo o mundo.

A cimeira de jazz vai na quinta edição e pretende desenvolver ideias e práticas inovadoras entre os atores-chave da paisagem cultural e do jazz na Europa durante três dias - 13 a 15. Coorganizada pelo CCB, pela Europe Jazz Network e pela Associação Sons da Lusofonia, tem o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, do Turismo de Lisboa e do Programa Europa Criativa da União Europeia.

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