Maria Dolores Aveiro: a mão de Deus
O fenómeno tem cromo dourado na caderneta do futebol mundial e deu origem a inúmeros livros e filmes na Argentina, país de onde o protagonista da história é originário. A expressão "a mão de Deus" é usada para designar o memorável golo marcado por Diego Maradona à Inglaterra e que permitiu à seleção argentina derrotar a inglesa e passar aos quartos-de-final no Mundial de Futebol de 1986. No final da partida, quando interrogado sobre o facto de ter marcado ou não um dos golos com a mão, Maradona saiu-se com esta frase: "Marquei-o um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus." Deus, contudo, não conseguiu vergar o bebé chorão malcriado que ainda neste Mundial apareceu no jogo da seleção argentina contra a da Nigéria gritando impropérios e fazendo gestos obscenos que lhe valeram a anulação do cargo de embaixador da FIFA.
A mãe do antigo jogador, Dona Tota, como era carinhosamente tratada, fez de tudo para ajudar o criador e atapetar os maus caminhos do filho, mas em vão. Malgrado os pés de ouro, Maradona perdeu-se na estrada.
Em 1986, quando uma das mãos de Deus empurrou Maradona para o céu, já a outra tinha amparado uma mulher chamada Maria Dolores Aveiro, anónima madeirense com pouco mais de 20 anos, mãe de três filhos pequenos e que se vergava sem medo ao trabalho para sustentar a família e a casa, mais do que humilde, na freguesia mais pobre da ilha da Madeira: Santo António.
Órfã de mãe desde os 6 anos, idade com que fora enviada para um hospício com a irmã Laurentina, de 4, e afastada dos restantes irmãos - só o mais velho, José, ficara à guarda do viúvo -, Maria Dolores tinha já dado provas de ser feita de uma fibra ultrarresistente. No livro Mãe Coragem, editado pela Matéria-Prima, a própria contou a Paulo Sousa Costa como foram terríveis esses primeiros anos de vida no Hospício D. Maria Amélia. É certo que ali não lhe faltava a comida nem os sapatos que lhe poupavam os pequenos pés ao frio e à chuva que por vezes fustigava a ilha. Sim, também tinha uma cama quente onde repousar o corpo franzino mas terão sido inúmeras as noites em que adormeceu a chorar. Tinha saudades da mãe, sentia a falta do pai e dos irmãos e transformava essa amálgama de dor num comportamento que as freiras consideravam deplorável. Os castigos eram mais do que muitos. E diversos: açoites por fazer chichi na cama, reguadas, horas a fio a apanhar ervas daninhas no pátio por desobediência e até um saco de papel enfiado na cabeça só com duas ranhuras para os olhos, máscara que identificava as crianças rebeldes e malcomportadas.
À revolta juntava-se a dúvida: onde estaria o pai que nunca a visitava? Domingo após domingo, dia de visitas, Dolores e a irmã permaneciam a um canto observando a alegria das outras miúdas. Por vezes, e como a própria contou na sua biografia - já publicada no Brasil -, um dos visitantes chamava-as para lhes dar um doce. Mas não havia um beijo nem um abraço e o cheiro de casa já se perdera há muito.
Quando o pai veio finalmente, trouxe um vento agreste de mudança. Apareceu-lhes no orfanato com aquela que Dolores compreendeu ser a sua nova mulher, a madrasta. A mãe de cinco filhos que tinham o privilégio de morar na casa que um dia fora sua e sentar-se à mesa com o seu pai. Foi uma desilusão naquela vida sem grandes ilusões. Não chegou, todavia, para lhe amputar a vontade de sair dali a correr rumo à liberdade, atrás de um tempo que a sua pequena memória guardava como tendo sido de felicidade.
As fugas sucediam-se pois a um ritmo que os castigos eram incapazes de aplacar. De tal forma que a madre superiora desistiu de a manter no rebanho. Mandou chamar José Viveiros, o pai da criança-problema, e comunicou-lhe que se podia sustentar cinco filhos que nem dele eram, haveria de arranjar maneira de alimentar mais uma boca, sangue do seu sangue, que ali só servia para semear a desobediência.
Com 9 anos, Maria Dolores voltou para casa sem saber que começava aí outra dolorosa etapa do seu calvário.
A comida escasseava na mesa mas os maus-tratos abundavam. O pai obrigava-a a chamar mãe à madrasta, que fazia mais do que jus à mítica personagem de A Gata Borralheira. Certo dia, ao saber que a miúda tinha perdido a cesta da escola, a mulher acometeu-se de tal fúria que a vergastou com um fio da eletricidade até ficar cansada. Dessa vez, Dolores fugiu mas a história acabou com ela entregue ao pai e uma advertência da polícia ao homem para que não voltassem a espancar assim uma criança. A resposta de José Viveiros foi curta: "Mereceu. É uma má influência para os meus enteados."
Dias mais tarde, foi levada a uma consulta com um psiquiatra com vista a ser internada numa instituição de acolhimento para deficientes. Valeu-lhe o bom senso do médico que ainda deu uma reprimenda ao pai, antes de os mandar aos dois para casa.
A história atribui a frase a Friedrich Nietzsche, mas ainda que não seja da autoria do filósofo, assenta como uma luva a esta história: "O que não nos mata torna-nos mais fortes." Aos 13 anos, Maria Dolores foi retirada da escola para se entregar a um ofício. Daí em diante, passava os dias a confecionar cestos agrícolas de vime, trabalho que levou para a vida de casada. Sim, casada. Mal soube que a filha, então com 18 anos, tinha namorado, José Viveiros anunciou-lhe o veredicto: tinha três meses para casar e sair de casa com um jovem vizinho: Dinis Aveiro.
É de calcular que esta miúda órfã de mãe, sem qualquer relação afetiva com o pai e que fora criada numa instituição religiosa, pouco soubesse de sexualidade. De resto, os tempos ajudavam à ignorância. Não foi portanto estranho que aos 19 anos se visse com uma filha nos braços, percebendo, poucos meses mais tarde, que um segundo vinha a caminho. A guerra tinha-lhe levado o jovem marido para o Ultramar de onde só voltaria quando Ela, a primogénita, começava a andar e Hugo, o mais novo, completava 7 meses. Mas esse homem que ela viu regressar de África já não era aquele com quem casara. Tal como aconteceu a muitos antigos combatentes, Dinis voltou do Ultramar com a alma em frangalhos. Nunca mais se viu um lampejo de alegria espontânea naqueles olhos.
O céu toldava-se de novo, sem que a mulher de quem falamos tivesse alguma vez gozado dias desassombrados.
"Dinis não apresentava sinais de recuperação, de reação, de querer sair do buraco negro onde se enfiara desde que viera da Guerra Colonial. Tinha deixado de trabalhar e o álcool passar a ser o aliado das suas batalhas internas", descreve Paulo Sousa Costa na biografia de Dolores Aveiro, para ilustrar o cenário que envolvia a família quando a matriarca tomou a decisão de emigrar, juntando-se a um irmão que vivia em França. E apesar de a separação dos filhos ser uma faca afiada - lembremo-nos do quanto sofreu com a separação dos irmãos e como tomou para si a decisão de um dia reunir toda a família dispersa - deixou-se ir, resignada, em mais essa aventura. Que seria, contudo, de curta duração.
Seis meses depois, as saudades trouxeram-na de volta a casa e a família cresceu: Dolores ficou grávida da terceira filha, Kátia. Foi por esta altura que a mãe destemida decidiu fazer o que se via acontecer um pouco por todo o lado, durante aquele que ficou conhecido como PREC (processo revolucionário em curso), ocupando uma velha casa abandonada - e degradada -, onde a câmara municipal só permitiu que se instalassem depois de assinarem um termo ilibando a autarquia de qualquer responsabilidade em caso de acidente. Felizmente, o teto não caiu e nenhuma parede ruiu, mas a bebé Kátia foi mordida por uma ratazana e essa foi a gota de água para Dolores. Pé na estrada e coração apertado, dirigiu-se de novo à câmara e pediu uma casa com o mínimo de condições para uma família com três crianças. Três quase quatro. Mas isso ela ainda não sabia...
E é aqui que a a mão de Deus a agarra, firme. Maria Dolores trabalha de sol a sol para sustentar três filhos e uma casa, sem poder contar com o apoio do marido - que, ainda assim, jamais crucifica. Acredita que não será capaz de lutar por mais um. Mais uma boca, mais uma alma a quem desejava dar tudo o que um dia quis dar aos irmãos. Mas a vida, teimosa, não deixa. Nunca deixou. A sua cabeça passa e repassa o filme de uma existência espinhosa. Dirige-se ao médico com a intenção de fazer um aborto mas este recusa pactuar com tal solução. Pela boca de uma das filhas da madrasta, ouve falar numa mezinha para fazer o desmancho em casa: beber o conteúdo de uma cerveja preta fervida e correr até perder as forças. Limpinho: ao fim de poucas horas o embrião seria expulso.
Mas Deus tinha outros planos para ela - para eles. E ao cabo das tais horas que seriam de aborto, e como nada acontecesse ao bebé, percebeu que ia ser mãe de novo. Quem sabe o médico não tinha razão quando, para a dissuadir do aborto, lhe dissera que aquela criança ia ser a alegria da casa?
Finalmente, às 10.20 do dia 5 de fevereiro de 1985, um ano antes de a tal mão de Deus dar um ar de sua graça no México, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, quarto filho de Maria Dolores dos Santos Aveiro e José Dinis Aveiro, nasceu no Hospital da Cruz de Carvalho, no Funchal. Diz Paulo Sousa Costa que logo após o parto, e "para atenuar a tensão do momento, o médico lançou uma frase que ficou para sempre na memória de Dolores: "Com uns pés como estes, vai ser jogador de futebol"".
O menino chegou então ao mundo e cedo mostrou ao que vinha. Vinha marcar aqueles golos que fazem explodir os estádios de futebol por onde passa e que levam o seu nome aos mais recônditos lugares deste vasto mundo.
Mas mesmo com uns pés de ouro - que outros já tiveram coisa mais ou menos parecida -, o menino de ouro podia nunca ter chegado lá. Podia, por exemplo, ter desistido e voltado para casa quando, aos 12 anos veio treinar para a Academia do Sporting. Sozinho numa cidade desconhecida, alvo de chacota por causa do sotaque e morto de saudades de casa, Ronaldo teve uma mão firme que o impediu de vergar. A mão daquela que tinha todas as razões para desistir e nunca o fez. Diz um dos poucos ditados não machistas que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Neste caso, meus caros, não tenham dúvidas: ele pode ter um par de asas nos pés mas a mão que o empurrou sempre para a frente foi a da mãe. E a de Deus, se quiserem.
Texto publicado no suplemento 1864 do dia 19 de agosto de 2018.