Margarida Marinho abre a porta mágica da infância
Margarida Marinho lembra-se "de tudo" o que pertence à sua infância. E recorda o tempo em que tinha 2 e 3 anos "como se fosse hoje". Então ouvi-la é como regressar a uma personagem de contos de fadas, agora com voz e mente de uma adulta. A conversa sobre a infância revisitada tem uma razão chamada Tattoo, uma miúda comilona, gordinha e solitária que vai descobrir um outro lado da vida, o seu avesso, que a noite lhe mostra. Foi sobre ela, ou guiada por ela, que a atriz, que já publicou contos e crónicas, escreveu o livro infantojuvenil Tattoo - De Noite, Um Cavalo Branco.
Os primeiros anos de vida de Margarida Marinho foram passados no Colégio Figueiredo, fundado pela sua avó, a pedagoga Emília de Figueiredo, num palacete da família em Campo de Ourique, que hoje já não existe. A sua mãe acabou por tornar-se diretora daquele colégio que, quando Margarida o conheceu, já era só de meninas. "Eu cresci no meio de letras, de cantilenas: a tabuada, os rios, os caminhos-de-ferro, tornavam-se uma cantilena, porque a educação era muito oral. Digamos que havia uma tradição muito forte que obrigava as crianças a trabalhar a memória."
Aos 3 anos, já sabia "de cor e salteado" as proposições, "à força de tanto as ouvir". É que a aprendizagem fazia-se numa espécie de jogo contínuo conduzido pela sua mãe. "Tínhamos aulas em qualquer lado, tanto podia ser em cima da cama, quando ela costurava ou tricotava, podia ser à mesa, no meio de livros... Não havia lugares de escola, aquele lugar formatado para receber informação." Além disso, entrava e saía das salas de aula ao longo do colégio. Depois, nessa espécie de jogo contínuo em que se habituou a viver havia também o lado da fantasia e da imaginação, que cresciam naquele colégio que marcou "um período muito romântico" na vida de Margarida. "Tinha que ver com aquelas batas brancas, imensas, que podiam ser anjos ou outras coisas, e por vezes muito traquinas, porque as raparigas quando se juntam têm uma capacidade muito forte de transgredir as regras." Quando o edifício começou a degradar-se, conta, "onde nascia uma racha, a minha mãe pintava uma árvore: tudo era transformado uma proposta artística".
Outros momentos que recorda, já depois de terem deixado o colégio, são os serões "passados com jogos literários, com brincadeiras ligadas aos dicionários. Abríamos os dicionários e víamos qual era o primeiro a chegar mais perto do significado de uma palavra. A minha mãe adorava esse tipo de jogos. Tinha seis jogadores, não é?" Ela é a quinta.
"Eu não falava muito. Era uma criança muito silenciosa, gostava mesmo era de ouvir os outros. E era uma espécie de espia silenciosa, entre os adultos, adorava ouvir as conversas, ver as pessoas, afastar-me e ver como é que caminhavam, como é que as mulheres se vestiam, como se penteavam, como seduziam... Vê-se naqueles filmes de Super 8, os meus irmãos todos na brincadeira e eu passo assim ao longe com um saco de pano e um taco de críquete. Sempre a olhar para eles, a entrar e sair de campo."
Tinha 3 anos quando decorou todo o livro da primeira classe, para fingir perante a mãe, exigente, que já sabia ler. "Durante algum tempo iludi-a. Um dia fui apanhada porque em vez de dizer que a avó quando vai à missa leva o xaile, disse quando vai à igreja leva o xaile. Aí fui apanhada..."
Quando falamos do verdadeiro começo da aventura da leitura, Margarida - que neste ano participou na série televisiva Vidago Palace - evoca imediatamente a tia Maria: "Uma espécie de guia na terra que eu tive, que me levou para todo o lado, para todas as paróquias que existiam em Lisboa - era uma verdadeira amiga da Igreja -, e gostava muito de tertúlias ligadas à filosofia." Quando tinha 9 anos, o pai levou-a a conhecer o escritor Adolfo Simões Müller. "Foi um encontro maravilhoso, ele foi de uma delicadeza para uma criança que estava completamente seduzida por tudo aquilo. Eu passava horas com os contos de fadas, havia livros que já não tinham lombada. Ele adaptava muita coisa do [Hans Christian] Andersen, portanto era a pessoa que eu conhecia mais próxima do Andersen."
Embora Margarida diga que nunca chegou a sair daquela espécie de jogo - em cuja evocação quase se ouvem logo as cantilenas de escola -, passamos para a idade adulta, e para a escrita de Tattoo. Na epígrafe do livro, dedica-o, entre outros, ao seu filho, Manuel - "A primeira ideia para Tattoo nasceu quando ele nasceu" - e à filha, Carlota, a quem diz ter ido "buscar vida para dar vida a Tattoo". Perguntamos-lhe por essa sequência. "É engraçado, a minha filha perguntou-me isso ontem. Com o Manel nasceu a ideia, a personagem tinha outro nome. Depois mais tarde fui escrevendo mais uma ideia e outra, e quando a Carlota nasceu, finalmente disse: "Cá está, é assim." A Tattoo já era alguém que estava dentro de mim. Há coisas que acontecem que nós não controlamos: a partir de certa altura ganham uma voz própria e nós só temos de ser humildes, no sentido de registar o que vai acontecendo. Há personagens que nós não dominamos, e ela [Tattoo] aparece porque sim. Porque é um conjunto de fragmentos que eu herdei, com certeza, que observei, com certeza, que roubei, com certeza."
A aventura em que seguimos Tattoo ensina que há coisas da vida deste lado que se resolvem no seu avesso. "Precisamos de ordem, e os livros infantis criam ordem nas crianças, dão-nos um mapa afetivo, emocional, um mapa-múndi... E ensinam que o mistério faz parte do mundo material e que a porta que está fechada abre tanta coisa para além do escuro...", explica a criadora da miúda Tattoo.