"Marcelo lançou finalmente o debate público sobre a escravatura"
"Estas declarações do Presidente da República sobre a escravatura e o papel de Portugal nela têm a vantagem de lançar um debate, de mexer num assunto que desde 1974 foi varrido para debaixo do tapete."
Pedro Schacht Pereira, professor associado de Estudos Portugueses e Ibéricos na The Ohio State University, primeiro subscritor da carta aberta "Regresso a Gorée - Não em nosso nome", que o DN hoje publica, quer crer que Marcelo, apesar "da extrema ligeireza do que disse", finalmente abriu, pouco antes do 43º aniversário do 25 de Abril, a caixa de Pandora que tem estado arrumada na mais recôndita prateleira da psique nacional. "Este debate existia na academia, nas universidades. Mas agora passou para a esfera pública, com artigos a saírem todos os dias nos jornais [e posts no Facebook como o do ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus e ex-embaixador de Portugal em Paris Francisco Seixas da Costa e do ex-deputado do PS e antropólogo Miguel Vale de Almeida], e aquilo que espero do Presidente é que clarifique a sua posição e dessa forma contribua para a promoção e a saúde de uma discussão da qual a sociedade portuguesa sairá com certeza melhor."
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Comentando que "a história que se dá na escola sobre o esclavagismo português ainda é a mesma que se dava no Estado Novo; fiz o liceu depois do 25 de Abril e não me lembro de se ter sequer falado do assunto, para além da declaração de que 'Portugal aboliu a escravatura em 1761'", Schacht ficou ainda assim "boquiaberto" com as afirmações do PR: "Pus-me a pensar na quantidade de trabalho que temos pela frente." E indignado, como se percebe no longo post que escreveu logo no Facebook, e no qual comenta: "Não é desmentir o Presidente, por lamentável que seja essa necessidade, aquilo que está ou deveria estar em causa. O que está em causa é que a obstinação em não reconhecer a responsabilidade nacional na história nacional implica uma admissão involuntária de culpa não resolvida, como uma desonra familiar que se esconde dos hóspedes. E, concomitantemente, a infantilização dos cidadãos, como se elas/eles não tivessem capacidade de receber em herança a sua história, e de, como dizia Sophia, "livres habitarmos a substância do tempo". As respostas ao post, com várias pessoas a pedir que o tornasse público para ser partilhado, levaram-no a formular a hipótese de escrever uma carta - ao que muitos disseram: "Eu assino." Decidiu pois avançar com a dita.
Schacht, que nasceu no Porto em 1969 e se formou em Filosofia na Universidade de Coimbra, tendo-se doutorado em Estudos Luso-Brasileiros na Universidade de Brown, nos EUA, onde acabou por se radicar -- está na The Ohio State University desde 2008 - confessa ter ficado desde logo intrigado com o anúncio de que Marcelo ia a Gorée, em face dos precedentes pedidos de perdão de João Paulo II [em 1992] e de Lula da Silva [em 2005] naquele local. "Não tinha grandes expectativas.. Não esperava de um responsável português que assumisse uma posição muito vincada, muito menos um pedido de perdão. A posição do perdão é performativamente, politicamente e eticamente complexa, não é qualquer líder que é capaz de emitir um perdão que faça sentido." Mas, prossegue, uma coisa é não ter expectativas, outra é "constatar o absurdo de uma posição que repete a propaganda do século XIX e do Estado Novo, quando já não temos colónias, vivemos numa sociedade democrática e globalizada e já não temos uma população tão ignorante. Um dos meus projetos é escrever um livro sobre o sublime africano na obra de Eça de Queirós - que está pejada de referências a africanos, algo que está longe de ser suficientemente estudado, e que demonstra que esta questão era problemática na sociedade portuguesa. E parece que o debate continua no mesmo ponto." Aliás, prossegue, "a figura que melhor nos permite pensar as contradições de Portugal é o a do padre António vieira - que é glorificado como um defensor dos índios mas que nos Sermões do Rosário advoga a importação massiva de mão-de-obra africana para o Brasil. Por um lado tem um desprezo enorme pelos colonos portugueses e por outro condena os africanos à salvação pela escravatura."
E reações à carta, que prevê? Responde com um sorriso na voz: "Há muita raiva e fúria nas reações que tenho visto aos textos críticos das declarações do PR que têm sido publicados, e que advém de esta questão não ter sido trabalhada, pensada, questionada. Mas descontando o facto de que nas redes sociais as reações são sempre brutais -- quem achar que Portugal é um país de brandos costumes só tem de se educar nas redes sociais -- o que espero, tanto de académicos que assinaram o texto como dos que não o assinaram, é que publiquem textos."