Marcelo acusado de pisar o risco? Especialistas dividem-se sobre poderes
A viagem de Marcelo Rebelo de Sousa a Bruxelas não extravasa as competências do Presidente da República na opinião de constitucionalistas ouvidos pelo DN, ao contrário do que defendeu Vital Moreira. Segundo este professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a deslocação de Marcelo "às instituições executivas da União Europeia, Comissão e Conselho" - que Vital Moreira diz supor não ter precedente - "para tratar das relações entre Portugal e a UE" não tem "abrigo" nos poderes definidos pela Constituição da República Portuguesa.
O também constitucionalista Paulo Otero recusa, em declarações ao DN, esta leitura tão estrita. Recorrendo ao artigo 120.º do texto constitucional, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa remete para aquela que é a prática internacional na qual "o chefe de Estado tem poderes de representação dos respetivos Estados, isto é, tem um poder de representação, neste caso, da República Portuguesa". E completa o seu raciocínio: "Essa representação tem um plano interno mas também tem um plano externo. O Presidente da República também representa externamente, no direito constitucional português, o Estado português. Há aqui uma ponte entre o que o direito internacional diz e o que o direito português diz."
Outro constitucionalista, o deputado socialista Pedro Bacelar Vasconcelos, nota que "se se trata de uma visita em que, como Chefe do Estado, comandante das Forças Armadas, o Presidente se relaciona com outros Estados e outras entidades internacionais com as quais Portugal tem relações, independentemente dos assuntos que trate e do sentido em que os vai tratar, não há nenhum motivo para levantar essa questão".
Só existiria uma subversão, segundo este professor, "se porventura o Presidente da República se deslocasse a outros Estados ou instâncias da União Europeia, como é o caso, para decidir questões ou preparar a decisão de questões que não são da sua esfera de competência e num contexto totalmente desligado e desarticulado do governo". Aí, sim, nota ao DN, "estaríamos perante efetivamente uma subversão do quadro constitucional de separação de poderes". Preto no branco.
Otero acompanha esta leitura de Vasconcelos. "Resta saber se essa intervenção autónoma do Presidente da República é mesmo autónoma porque ultrapassa aquilo que o governo pretende, vai para além ou vai em sentido contrário aquilo que o governo quer." E justifica a sua afirmação: "Uma coisa é o Presidente estar a expressar a opinião do governo; no fundo, ele é o porta-voz em sintonia com a atuação do governo. Outra coisa é o Presidente antecipar-se àquilo que o governo não diz, não queria dizer, ou viria a dizer." Ou seja, argumenta, "se é o Presidente a liderar a política externa, claramente que isso vai para além das competências constitucionais do Presidente". Afinal, Belém não é o Eliseu, "o Presidente português não é o presidente francês", conclui.
Vital Moreira - que expressou a sua crítica num post no seu blogue Causa Nossa com o título "O que o Presidente não deve fazer" - nota que "na nossa ordem constitucional, o Presidente da República não é titular nem cotitular da política externa nem da política europeia", não representando o país no Conselho Europeu. O antigo eurodeputado socialista reconhece que "o Presidente tem todo o direito de acompanhar a política europeia do país, que compete exclusivamente ao governo, através da informação que o primeiro-ministro está constitucionalmente obrigado a proporcionar-lhe". Mas, acrescenta Vital Moreira, "o interlocutor oficial das instituições europeias em Lisboa e em Bruxelas só pode ser o governo. O caminho entre Belém e Berlaymont passa por São Bento", afirma, referindo-se à sede da Comissão em Bruxelas. Este constitucionalista não vê ainda "nenhuma vantagem política" nestas "iniciativas de "diplomacia paralela" (mesmo se convergente), que só podem causar perplexidade e confusão em Bruxelas sobre quem é responsável por quê na política europeia do país".
Já Paulo Otero remete para a história para notar que "há precedentes nessa matéria". No tempo do general Ramalho Eanes, "falava-se em diplomacia paralela, o Presidente da República desenvolvia uma linha de atuação externa paralela à dos governos da altura". Depois de Eanes, "a prática tem sido a subordinação do Presidente à condução da vida política interna mas também externa por parte do governo". E há uma semelhança entre os dias de Marcelo e Eanes, constata: "O protagonismo que o Presidente da República tem decorre de uma circunstância factual, que é existir um governo que não é maioritário."