Mar de gente na chuva de Paraty

Termina hoje a Festa Literária Internacional de Paraty. Por lá choveu: literatura  e histórias anónimas que se cruzaram com as dos escritores no meio de ruas
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Ela tenta equilibrar-se entre as pedras. Chuvisca. As gotas adormecem mal tocam o chão. As solas das sandálias dela deslizam nas pedras traiçoeiras. Chapinhou na poça, molhou o pé. No sentido inverso, ele caminha sem olhar para a rua, com andar pausado, como se desde pequeno lhe conhecesse os segredos. E é a primeira vez que a pisa.

Pose irrepreensível, nariz pontiagudo, camisa cor-de-rosa, gravata verde-lima, fato moldado ao corpo. Este gentleman de chapéu elegante é Gay Talese, escritor norte-americano e um dos mestres do Novo Jornalismo, convidado para a Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP - que hoje fecha o capítulo da sétima edição, no Brasil.

Não é preciso saber inglês para perceber que aquele cavalheiro, certamente, é um escritor. Ele não a olhou nos olhos, mas viu quando a fivela da sandália se soltou ao deslizar na poça, enquanto mudava o guarda-chuva para a mão direita. Não se conhecem, embora no dia anterior, se tivessem cruzado. "Aquele não é o senhor que sentou ao nosso lado?". Depois o chapéu fundiu-se num mar de gente que recebia as gotas no rosto.

Segundos depois, o escritor chinês Ma Jian passaria na mesma rua a conversar com um amigo.

Na esquina ao lado, as crianças pedem uma fatia de bolo de fubá ao senhor Cilas, que segura um guarda-chuva para as pingas não molharem o carrinho com os doces que a filha fez. Outro casal pede um pé-de-moleque, doce de amendoim envolto em creme de leite, com o mesmo das pedras do chão de Paraty. O Tiago das borboletas está sentado na esquina. Diz que nasceu em Pequim, enquanto acaricia a barba cheia de ganchos em forma de borboletas. Vende calendários e mais borboletas. Ao lado, duas meninas indígenas vendem colares.

Passa um homem de bicicleta de rosto enrugado. Vem do porto e diz que lá há barcos para visitar as ilhas da Baía de Paraty. Cheira a café, vem da casa da Rua do Comércio, por onde também já passaram, dois séculos antes, os senhores do ouro e das fazendas de café. Ouve-se a dobradiça a ranger quando a mulher de tranças negras fecha a porta pesada de madeira. A casa está caiada de branco, as janelas sublinhadas a azul da herança colonial e, no cimo, três cunhais de pedra formam um triângulo imaginário.

A linguagem maçónica é estrutural na vila: as plantas das casas têm escala 1:33:33, o centro histórico tem 33 quarteirões. E é por lá que passa a charrete do senhor Bontempo. Na rua, vende-se literatura de cordel. Um outro Tiago aparece e pergunta se pode ler um poema da sua autoria.

Aquele que recitou, certamente, chegou até onde a Gabriela está na prateleira, não a do escritor Jorge Amado, embora esta também tenha cravo e canela. É nome de cachaça. E a loja que a vende tem mais de 20 segredos delas para contar. Coisa que o escritor português António Lobo Antunes, também uma "cria" de Jorge Amado, não gosta de fazer. Porque, "não há segredo nenhum" naquilo que escreve, disse, leve e pausado na conferência de imprensa na quinta-feira, até porque "não se deve acreditar num escritor".

Do que ele, realmente, gosta é de contar "histórias anónimas", das pessoas "que não têm voz" e de frases que persistem na cabeça até as parir num livro, como "esta casa deve ser triste às três da tarde", que lhe ficou no baú cerebral até à terapia da escrita.

Anoitece. A chuva entra pelas janelas das casas de portas abertas. E a multidão parece-se com gotas coloridas gigantes. É que estas ruas nunca são tristes em hora alguma.

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