Há gente sem gente dentro", diz o poema do moçambicano Mia Couto. Haverá, e não será pouca, como demonstra à saciedade a crueza dos dias que vivemos, mas não é o caso da obra de videoarte em que este poema é dito, Viagem pelo Esquecimento, em exibição no MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, até 5 de maio (em sessões contínuas, das 11h00 às 19h00). Nela se juntaram, como num todo orgânico, as vontades da diretora de arte da obra, Ana Mesquita, do músico João Gil e de Mia Couto, autor dos poemas, que, pelo caminho, foram conquistando vários cúmplices. O resultado é um filme tríptico, de 63 minutos, dividido em 12 capítulos, em que, num registo híbrido entre o documentário e a abstração, passam temas tão vitais como as cidades, a vida, o amor, os migrantes, a mulher, os ancestrais ou o que vem depois de nós..Se nesta viagem quisermos remontar ao momento da partida, importará ir ao ano de 2017, quando Ana Mesquita (artista plástica com arte pública visitável nos concelhos de Oeiras e Cascais, depois de ter sido jornalista durante perto de 20 anos) viu, na ARCO de Madrid, uma instalação que muito a tocou sobre a humanidade e a sua relação com o planeta: "Quis muito fazer alguma coisa com aquele espírito. Cheguei a candidatar-me a uma bolsa da Gulbenkian para estudar sonoplastia em Paris. Procurei a escola, passei um mês a preparar um portefólio, mas não aconteceu. E foi então que o João me mostrou alguns temas instrumentais que tinha guardados - ele tem sempre imensa coisa feita. Em retrospetiva, posso dizer que foi assim que nasceu a consciência de que estava ali a génese de uma banda sonora de alguma coisa a ser criada. Por sua vez, o Mia há muito tempo que tinha vontade de escrever para o João, eventualmente letras para canções. E arrancámos.".Assim foi sendo delineada, ao longo de quatro anos de trabalho, esta Viagem pelo Esquecimento. O trabalho conta com banda sonora de João Gil e orquestração de Luís Figueiredo, 12 poemas inéditos de Mia Couto - ditos por vozes como a dos músicos Maria Bethânia, Manuela Azevedo, Carlão e do próprio João Gil, dos atores Diogo Infante e Natália Luiza e do radialista Fernando Alves, e a videoarte dos fotógrafos e cineastas Ana Mesquita, Isabel Nolasco, Maria João Rodrigues, Mariana Teixeira, António Proença de Carvalho, Henrique Blanc, Pedro Sena Nunes, Sebastião Albuquerque e Vasco Pinhol. Como descreve Ana Mesquita na apresentação do trabalho: "Todos os vídeos apelam à consciência de quem fomos e convidam a uma postura ecológica, representando a história do Homem de um modo poético e apaixonado e navegando depois nessa espécie de amnésia em que a mente mergulha face ao estímulo multissensorial da instalação.".No MAAT, a obra é projetada em três ecrãs, que, entre si, competem pela atenção do espetador, que pode optar por se sentar numa cadeira ou por se estirar num pufe para uma experiência ainda mais imersiva.."Antes de nós já éramos quem hoje somos", escreve Mia Couto no princípio desta viagem, que acabará no outro lado do fio temporal, "o que vem depois de nós". Na mente dos três autores estava já, como nos diz o escritor moçambicano, "a necessidade de construir um caminho que seja um contrapeso ao ponto de esquecimento a que chegámos nas nossas sociedades e que é de uma profunda tristeza. Mas só pondo os pés na estrada é que construímos o caminho"..E assim foram os três. Em 2018, reuniram-se em Moçambique, terra onde Ana Mesquita também nasceu e a que a une um laço profundo, para desencadear um processo criativo onde, salientam, mais do que cumplicidade, "houve intimidade." Como nos conta João Gil: "Estivemos os três juntos em Moçambique e esse momento foi muito importante. Passámos informação artística muito íntima uns aos outros. Foi ali que conseguimos desenhar os temas, que funcionam como os sucessivos apeadeiros desta viagem. Foi um tempo de escuta para os três, de grande respeito pela independência das três linguagens. E é isso que faz a diferença. Nunca andámos atrás do prejuízo, estávamos disponíveis sem coisas prefeitas, definitivas, para começar a criar um tecido que fosse o resultado do encontro. Não nos sentíamos com obrigações ou cadernos de encargos.".Mia Couto concorda e valoriza o papel da escuta do outro no processo criativo: "Funcionámos os três como um nó a partir da escuta, que é um ato primordial de toda a arte - seja ela escrita, visual ou musical. Escutávamos até o silêncio dos outros. Foi muito mais do que trocar ideias, porque com ideias fazem-se ensaios e não arte, porque esta exige que se pense, sim, mas com o corpo inteiro." Neste trio, Ana, que serviu de motor, tinha que tomar decisões: "O meu trabalho foi abstratizar em relação à música e à poesia. Sabia que não poderia ser muito óbvia, nem queria sê-lo. Quis criar ainda mais mensagem, sabendo que a imagem ainda é mais tangível e imediata do que todas as outras linguagens.".A viagem começou nessa terra em que Mia Couto é também cuidador de aves que se perdem dos ninhos, entre elas quatro corujas ainda ao seu cuidado, "porque, entretanto, perderam a capacidade de serem autónomas". Uma terra ainda com outro modo de viver o tempo e a ancestralidade, como nos diz o escritor a propósito do seu poema O Retrato, um dos "apeadeiros" desta Viagem: "Em Moçambique, os mortos são sujeitos do presente, fabricam o quotidiano connosco. No meu caso, eu não conheci nenhum avô. Este poema fala do modo como eu e os meus irmãos inventámos os avós através de histórias que os meus pais contavam. Precisamos de ter esse sentimento de eternidade, que não temos sem os nossos mais antigos. Mas a nossa relação com o tempo é sempre ficção. Há várias versões da História e temos de estar disponíveis para escutar todas elas.".A viagem segue pelo Bairro da Mafalala, em Maputo, que não é um bairro qualquer, porque foi de onde saiu o grito da luta pela independência e onde nasceram ou viveram Eusébio, Samora Machel, Joaquim Chissano, Craveirinha e Noémia de Sousa. E ganha asas, tornando-se global. Doravante, pela peça hão de passar imagens e sons que são do mundo e de todas as épocas..Entre os três não houve temas menos consensuais. A importância dada ao papel da mulher na sociedade e como guardiã preferencial da memória, nesta obra é admitida pelos três, que reconhecem ainda muito estar por fazer em matéria de igualdade de género. Na Europa como em África. A esse propósito, Mia Couto salienta que "não podemos continuar a pensar que o problema são sempre os outros, porque esta é também uma luta que travamos connosco próprios, homens e mulheres, e com os valores que nos foram inculcados em meninos". E conclui, relacionando o tema com esta Viagem pelo Esquecimento: "Em Moçambique, quem conta a história das famílias, de geração em geração, são as mulheres, mas muitas vezes contam uma versão que foi construída contra elas próprias. E repetem-na mesmo assim." Ana Mesquita não poderia estar mais de acordo: "Temos de admitir que em várias culturas, não apenas na africana, são as mulheres que transmitem essa tradição segregadora às gerações seguintes, e é também isso que tem de ser desmontado se quisermos acabar com a desigualdade e com a violência de género.".Sem "esperar pela estrada", porque "é o pé que faz o chão", como também se ouve nesta Viagem, "recrutaram", como vimos, outros companheiros de jornada. Maria Bethânia, por exemplo, que, como nos conta Ana Mesquita, "é uma fã da literatura de Mia Couto" e aderiu com entusiasmo ao projeto. Ou os músicos que colaboraram com João Gil, como relata o próprio: "Do meu lado, esta é uma viagem de anos com um capitão a bordo muito importante, que foi o Luís Figueiredo, um dos grandes orquestradores que temos em Portugal e que fez arranjos muito bons. Transformou as ideias em cordas, sopros, percussão, e depois encontrámos um coro de vozes femininas, que não queríamos virtuosas e cristalinas mas que fossem a própria Vida. Queríamos ter representadas as mulheres de todo o mundo (as dos Balcãs, de África, do Alentejo, do Minho e também do Mississípi)." Neste processo de envolver gente, os três destacam também a adesão imediata de João Pinharanda, diretor do MAAT, e do Presidente da República, que concedeu o seu alto patrocínio à obra, até pela forte ligação que Marcelo Rebelo de Sousa assume ter com Moçambique, onde passou parte da adolescência..Ana Mesquita sente que este é o tempo certo de mostrar esta obra, à laia de mapa para não perdermos o rasto ao que deixámos para trás: "Acabamos com o depois de nós, que é este excesso de consumo em que estamos, esta voragem desgovernada que engole tudo e todos. Se não vivêssemos essa cultura do esquecimento, não estávamos outra vez à beira de uma guerra. Como é possível esquecermos o sofrimento vivido há menos de um século na Europa?" E conclui, no modo apaixonado que a levou a lutar tanto por esta obra ao longo dos últimos cinco anos: "Temos de construir uma nova memória para podermos construir outro caminho, uma narrativa que demonstre que, na sua fragilidade, a espécie humana só sobreviveu a tantas catástrofes e crises porque soube ser solidária. E, no entanto, a história da Humanidade continua a ser contada como uma sucessão de batalhas e feitos militares, invariavelmente escrita pelos vencedores.".Depois do MAAT, esta Viagem pelo Esquecimento, espera-se, andará pelo mundo. A próxima paragem será ainda em Portugal, na Bienal de Vila Nova de Cerveira, onde estará de 16 de julho a 31 de dezembro..dnot@dn.pt