"Não sei se aguentamos muito mais." A vida de Alzira Simões e de José Augusto não tem contado dias fáceis. Marido e mulher, gerentes da Livraria Saturno, em Oliveira do Bairro, lamentam as baixas receitas do negócio desde que o Ministério da Educação anunciou a gratuitidade dos manuais escolares. Numa primeira fase, do 1.º ao 6.º ano de escolaridade. Neste ano, alargado até ao 12.º. É uma das livrarias aderentes ao programa de vouchers, onde as famílias podem levantar os seus livros. Compram os livros, entregam-nos aos pais e esperam reaver o dinheiro investido. Mas os atrasos no pagamento deste investimento (que chegam a demorar meses) e agora o alargamento dos anos abrangidos pelo acesso gratuito a livros colocam desafios mais profundos ao pequeno comércio. Por outro lado, há quem tenha encontrado uma forma de lucrar com a medida..A notícia sobre a implementação de manuais gratuitos ao ensino público pode ter chegado como uma boa-nova para as famílias, mas não para estes livreiros. Já em 2017, um ano depois de a medida ter entrado em vigor, José Augusto avizinhava tempos ainda mais difíceis para o negócio..Em entrevista ao DN, lamentava que o regresso às aulas fosse a fonte de rendimento e sustentabilidade para o resto do ano. "Trabalhamos três a quatro meses, entre julho e setembro ou outubro, para manter a porta aberta durante todo o ano", dizia. Previa o desemprego como destino para muitos trabalhadores do ramo..Carta aberta pela "sobrevivência".Por isso, foi um dos que assinaram uma carta aberta em que vários pequenos livreiros deixaram uma "manifestação desesperada" sobre o risco de ver os seus negócios desaparecer. No documento, lembram que "a época escolar é, para a esmagadora maioria dos pequenos livreiros, o alicerce fundamental quer permite o continuar da atividade". Mas estão a ser "condenados ao desaparecimento pelo atual governo em consequência da forma como está a ser implementada a política de gratuitidade dos manuais escolares", lê-se..Criticam o método de distribuição dos manuais, com um número crescente de escolas a adquirir lotes de manuais, junto de empresas de maior dimensão, em troca de descontos. Os pequenos negócios, escrevem, sem capacidade para baixar as margens, saem penalizados..Dois anos depois, o DN voltou a contactar a Livraria Saturno. Foi Alzira quem atendeu, agora responsável pela loja, uma vez que o marido está hospitalizado por motivos psicológicos. É o reflexo do que por lá se tem vivido e que leva agora os responsáveis a ponderar deixar de ser uma livraria aderente do programa, garante. O que a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) justifica com o "alargamento da gratuitidade a todo o ensino básico e secundário" - representando mais investimento - e o "modelo de pagamento", com "atrasos significativos nas transferências de verbas por parte do governo para os livreiros", deixando-os sem capacidade de resposta durante este período..Em resposta à carta aberta dos livreiros, em 2017, o Ministério da Educação disse estar a pedir às escolas para adotarem medidas de forma a protegerem o comércio tradicional. Mas admitiu não poder ir mais além, lembrando que os agrupamentos gozam de autonomia para decidir comprar eles ou não os lotes de manuais.."O processo de aquisição está na esfera de autonomia das escolas, que escolhem a melhor maneira de atuar, sendo certo que nas orientações dadas pelo ministério está expressa a promoção da economia local em qualquer que seja o procedimento adotado pelas escolas", justificava..Entretanto, os livreiros continuam a desaparecer. Se em 2012, citando dados publicados pelo ISCTE, havia cerca de 650 pequenas livrarias no país, a APEL acredita que este número se situe atualmente abaixo dos 600. "Sendo certo que uma das principais razões para esse facto se relaciona com as alterações introduzidas no setor da edição escolar", escrevem, em resposta ao DN..Uma startup para os manuais.Três volumes para aqui, mais livros de fichas para ali, sempre muitos manuais e caros. Desde sempre que a vida de muitas famílias se contou desta forma no início de cada ano letivo. Como estudantes, Manuel Alvor, 24, e João Bernardo, 20, viveram-no de perto também. Um dia, resolveram sair da pele de espectadores para exercer algum tipo de ação sobre o tema. Assim nasceu a Book in Loop, em 2016, como uma plataforma de e-commerce de venda e compra de livros escolares em segunda mão..Todo o sistema funciona à base da troca, mas ficam de fora os livros do primeiro ciclo, devido à sua estrutura, que os torna dificilmente reutilizáveis. Servem apenas manuais do 5.º ao 12.º ano de escolaridade. Caso tenha livros destes anos em casa e estiver disposto a ver-se livre deles através deste projeto, basta aceder à aplicação (disponível para sistema iOS e iPhone) ou ao site , ler com a câmara ou digitar o código de barras dos livros, através do qual se fica a conhecer automaticamente quanto valem. A partir daqui, o utilizador tem duas hipóteses: ou pedir a recolha dos livros (com um custo adicional de cerca de cinco euros), ou entregá-los presencialmente num dos pontos de recolha..Quando são entregues, seguem para um centro logístico. Aqui passam por um processo de controlo de qualidade que é certificado pela Universidade de Aveiro, para determinar se estão em boas condições - "se não estão riscados, se não têm páginas em falta", por exemplo, diz o fundador. Caso não estejam aptos para ser reutilizados, seguem para reciclagem. Se estiverem em bom estado, são disponibilizados para as famílias que procuram livros através da aplicação. "Basta dizer qual a escola e o ano em que está o seu filho, porque sabemos quais os livros adotados por escola e ano. Confirma-se a compra e procede-se ao pagamento", explica o fundador..Os livros não são gratuitos, embora vendidos com mais de 50% de desconto. "No final do ano, quando a família já não precisar dos livros, pode entregá-los e receber metade do dinheiro que pagou, 25% do valor total do livro", garante..Manuel Alvor explica que "há dois principais núcleos de clientes". Em "grande maioria, os pais de alunos no ensino privado, não abrangidos pela medida da gratuitidade dos manuais". O caso dos pais que não têm direito à medida, que são aqueles que estão no ensino particular; e depois muitas famílias ("cerca de 20% do total, no ano passado") que optaram por comprar os seus próprios livros, mesmo com direito a manuais gratuitos, porque querem mantê-los sem a responsabilidade de não os poder estragar e porque o risco de isso acontecer faria que tivessem de pagar 100% do valor do livro no final do ano. Até agora, contabiliza Manuel, já 900 famílias entregarem livros nos pontos de recolha. Um número que Manuel garante que tem aumentado de ano para ano..Ainda neste ano, pretendem introduzir uma novidade: a extensão do programa ao ensino universitário. Depois de um teste na Universidade Nova de Lisboa, no ano transato, a Book in Loop quer agora lançar a UniLoop, desta vez alargado a todo o país. Trata-se do mesmo sistema de venda e compra de livros, mas dirigido a estudantes universitários..Desde o dia 9 de julho, na plataforma Mega foram disponibilizados os vouchers para os 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º anos. E desde a quinta-feira passada que abriram os pedidos também para os alunos dos 1.º, 5.º, 7.º, 10.º e 12.º anos. Os vouchers relativos a manuais novos podem ser levantados em qualquer livraria aderente e os reutilizados no agrupamento do aluno..A medida relativa à gratuitidade dos manuais escolares foi aprovada no Orçamento do Estado para 2019, alargada até ao 12.º ano (antes só disponível do 1.º ao 6.º ano), para alunos do ensino público, com efeito já neste ano letivo.