Manoel de Oliveira. Retrato do cineasta enquanto fotógrafo de eleição
Foi cineasta - e um dos poucos no mundo, senão o único, que começou no tempo do cinema mudo e acabou no digital - mas também atleta, acrobata no circo, corredor de automóveis, galã, dandy, um dos primeiros portugueses a ter brevet de piloto aviador. Agora ficamos também a saber que Manoel de Oliveira (1908-2015), o mais internacional dos realizadores portugueses, foi também um fotógrafo de eleição, como se pode ver na exposição que inaugura esta 6.ª feira no hall da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, "Manoel de Oliveira, fotógrafo" (patente até 17 de janeiro).
Ao todo, são 120 fotografias que percorrem vários géneros e temáticas (paisagens, retratos e naturezas mortas, referências ao Porto, a sua cidade, mas também imagens do circo e de aviação) provenientes do acervo do cineasta depositado na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, com sede no parque de Serralves. Tiradas entre os finais da década de 30 e o início dos anos 1950, são todas a preto e branco, sendo algumas provas originais impressas pelo próprio Manoel de Oliveira e outras ampliações, feitas a partir de negativos encontradas no acervo. "O que aqui são prova", disse ao DN António Preto, diretor da Casa de Cinema por escolha pessoal do cineasta, "é que, tal como o seu cinema, também a sua fotografia teve muitos caminhos."
Na verdade, a fotografia foi para Oliveira um instrumento de pesquisa formal e de experimentação, talvez uma outra forma de construir uma linguagem própria. Embora fosse um autodidacta também como fotógrafo, foi muito mais do que um diletante. Tudo parece ter começado no final dos anos 30, quando o realizador já filmara a sua obra de estreia, Douro, Faina Fluvial (de 1931), mas andava a pensar e a trabalhar Aniki-Bobó (de 1942). À frente da objetiva da sua câmara Leica passam as paisagens e as gentes do seu amado Porto, mas também o Douro vinhateiro, a sua noiva (e depois mulher de toda a vida), Maria Isabel, os pilotos e os aviões do aeródromo local, os pequenos protagonistas de Aniki-Bobó, o mundo mágico do circo. "Enquanto fotógrafo", explica ainda António Preto, "Manoel de Oliveira foi muito produtivo nos 14 anos em que esteve sem filmar. Aniki-Bobó fora muito mal recebido pelo público e pela crítica e, um pouco na sequência dessa receção, ele não vai encontrar financiamento para regressar ao cinema, o que só acontecerá em 1956, com o filme O Pintor e a Cidade, já a cores."
O curioso é perceber que há uma relação direta entre algumas das fotografias e a filmografia de Oliveira - a realmente filmada e a que não passou da fase de projeto: As imagens no circo foram tiradas no ano em que ele escreveu o guião (nunca filmado) O Saltimbanco (1944) e as da aviação, realizadas entre 1937 e 1938, relacionam-se com um projeto de documentário, até agora desconhecido, sobre os cursos de pilotagem do AeroClub do Porto. Por outro lado, três retratos (de 1952) de uma jovem defunta, prima de sua mulher, que Manoel de Oliveira foi chamado a fotografar (como era hábito na época) são evocados, muitos anos depois, no filme O estranho caso de Angelina, estreado em Cannes em 2010. Também em termos conceptuais, um certo fascínio pela morte e pela ideia de transcendência, constantes em toda a filmografia de Oliveira, estão bem presentes nestas fotografias.
Depois de 1954, vimos o fotógrafo cederá lugar ao cineasta, que até 1971 fará também a direção de fotografia dos seus filmes. Ao frequentar um estágio para aprendizagem da cor na AGFA, em Leverkusen, na Alemanha, voltou às câmaras de filmar, abdicando da fotografia de António Mendes (que trabalhara com ele em Douro e Aniki-Bobó). Refira-se, a título de curiosidade, que Oliveira só voltaria a contratar um diretor de fotografia no filme O Passado e o Presente e que a escolha recairia no então muito jovem Acácio de Almeida, hoje nome maior na cinematografia portuguesa.
"No acervo de Manoel de Oliveira", afirma ainda António Preto, "há milhares de fotografias, embora muitas delas sejam de família, de férias ou ainda da rodagem de filmes. Escolhemos estas 120 para a exposição porque têm um fio condutor." De resto, garante, o espólio do cineasta, que está a ser tratado, catalogado e digitalizado, ainda nos reserva muitas surpresas. Algumas delas serão reveladas na próxima exposição da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, que inaugurará a 30 de novembro. O tema? As relações artísticas do cineasta com a escritora Agustina Bessa-Luís.
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