"Manoel de Oliveira não era de convívio fácil, poucos com aquele génio o devem ser"
É impressionante como era tão jovem a filmar quando era antigo enquanto homem. Ele não suportava que as pessoas tivessem tatuagens e o modo como se relacionava com as mulheres vinha de outra época. Ele foi velho no tempo, mas mudava de filme para filme - nunca ia filmar de forma igual." O biógrafo Paulo José Miranda está a falar de Manoel de Oliveira, o protagonista do livro A Morte Não É Prioritária, de quem apreciava a obra e viu todos os seus filmes durante o tempo de escrita desta primeira grande biografia sobre o realizador que os franceses e italianos honravam de todos os modos possíveis.
Foram aliás os primeiros que o salvaram ao aclamar o seu filme Amor de Perdição como uma obra-prima após ter sido enxovalhado em Portugal. Como conta Miranda, "há um momento fundamental na carreira de Manoel de Oliveira: 1978. Quando a RTP passa esse filme em seis episódios, a preto e branco e com uma linguagem antinaturalista, logo após os portugueses terem acabado de ver passar a novela Gabriela na televisão. As pessoas estavam ávidas de um discurso televisivo diferente do do antigo regime e Amor de Perdição foi um desastre. Toda a gente criticou, a Natália Correia então nem se fala, e até se fez um debate televisivo em que se disse que depois do Aniki-Bóbó Oliveira tinha feito o Aniki Gagá e foi dito que não poderia haver mais subsídios para Manoel de Oliveira filmar".
Esse momento na vida do realizador é dissecado na página 252 da biografia, sobre o qual Miranda recorda: "Se não aparece o Paulo Branco nesta história, era muito provável que Manoel de Oliveira não filmasse mais." O produtor exibe em Paris o filme para uma plateia selecionada, como a pintora Vieira da Silva, que considera o filme "a única grande obra de arte portuguesa dos últimos anos" e, acrescenta o autor, após elogios do Le Monde e de Serge Daney e Gilles Deleuze, entre outros, "é chegado o momento de rever posições em Portugal sobre Amor de Perdição. Dera-se o sucesso em Itália e o filme tornara-se um rastilho em vários festivais, uma caução que vinha de fora e fazia perguntar: teremos visto bem o filme? Quando cá passa no cinema, algumas pessoas mudam de opinião e ficam deslumbradas. E os próximos 25 anos são de uma produção estonteante entre o realizador e o produtor Paulo Branco."
Para o autor, é a exibição de Amor de Perdição em Paris que altera tudo: "Foi de tal modo que Manoel de Oliveira só era conhecido por alguns do cinema e passa a ser por toda a gente, mesmo que pelas razões erradas. Até se torna um estigma para o cinema português, visto como uma coisa antinatural e que não é para o público. É até objeto de piada." Um estigma que, refere, "ainda não sei se acabou em relação à obra de Oliveira".
Para fazer a biografia, Paulo José Miranda revisitou toda a obra do cineasta: "Vi os filmes todos e várias vezes - Amor de Perdição três vezes, Soulier de Satin (6.50) duas. Tive muita sorte porque a Cinemateca passou tudo. Era impossível escrever a biografia sem ver os filmes."
A maratona não foi difícil para Miranda, mas quem estava com Oliveira nos cenários nem sempre teve vida boa, como afirma (p. 404): "Não era de convívio fácil, poucas pessoas com aquele génio o devem ser. Ele era uma superstar em Itália e em França, é indiscutível, mas completamente avesso a quase todo o cinema que se fazia. Oliveira escreve um artigo para uma revista de cinema do Porto com 24 anos em que traça as linhas do que é o cinema: como era a importância do capital no EUA e a ideologia no da URSS, e propõe uma terceira via do que deveria ser o cinema: depender do autor. E é o que vai fazer a vida toda."
A dificuldade de conviver com Manoel de Oliveira é personificada, por exemplo, por duas atrizes: Leonor Silveira e Catherine Deneuve: "Nos filmes não se percebe, mas Leonor tem uma cena em que atira um gato ao chão na qual se sente a tensão. Ou Deneuve, que é o caso mais emblemático da dificuldade em trabalhar com ele." Havia dificuldades no modo como ele queria que olhassem para a câmara e esse não naturalismo que exigia aos atores nem sempre lhes era fácil ter. Ao mesmo tempo existem atores que o adoram, como diz Miranda: "É certo que todos diziam que gostavam dele e há atores que claramente se vê que sim, como Mastroianni, que faz com ele o seu último filme e a razão por que aceita é a de não saber o que vai fazer. Com Oliveira não é a mesma sopa de sempre e isso era muito estimulante para os atores. Como foi o caso de John Malkovich, que está na Europa e faz uma perninha num filme que estava destinada a Depardieu. E deram-se tão bem que o ator veio ao funeral do realizador."
A Morte não É Prioritária é uma biografia que se faz de pequenos capítulos, como se fossem imagens de cenas diferentes e que juntas resultam numa longa-metragem sobre a vida de Oliveira. "Tem que ver com o meu ritmo de escrita", diz o autor. Quanto às condições impostas para a escrita desta biografia, diz que houve duas: "Queriam um grande respeito pelos factos e que conseguisse fazer da biografia um livro meu em que houvesse um modo de narrar que se aproximasse do que tinha feito em Natureza Morta."
Quanto à escolha do biografado, não existiu uma proposta sua por antecipação: "Foi uma sugestão do editor Rui Couceiro que aceitei de imediato. Não me tinha passado pela cabeça antes escrever uma biografia, mas achei logo que nunca poderia passar tanto tempo com Manoel de Oliveira se não fosse a fazer este trabalho. Se não gostasse tanto dos seus filmes não teria aceitado, tendo percebido que conseguiria dialogar com ele para lá da parte estética, que me interessa muito, porque era um pensador."
Pode dizer-se que existem quatro anos que esta biografia não retrata, mas essa situação não se deve a Paulo José Miranda - é que o cineasta tinha prometido continuar a filmar até aos 110 anos. Quanto aos anos vividos, 106, cada um deles quase daria um livro. A seleção dos factos foi assim: "Apliquei a mesma técnica que os realizadores para filmar romances: fiz um argumento com a vida dele. Nunca é possível escrever uma biografia total de alguém e a de Manoel de Oliveira precisaria de sete mil páginas. Fiz uma escolha e evitei que houvesse alteração de factos ou ausência de momentos importantes para se perceber a vida e a obra."
Pergunta final a Paulo José Miranda: alguma vez foi preciso que o biógrafo defendesse Manoel de Oliveira? "Mal estaria Manoel de Oliveira se precisasse da minha biografia para se defender."
Paulo José MirandaEditora
Contraponto