"Mandela não usou os Springboks como bandeira contra o Apartheid, mas como remédio para um país ferido"

Como jornalista, António Aguilar esteve presente na célebre final do Mundial 1995, em que a África do Sul venceu a Nova Zelândia (15-12), e contou ao DN as emoções do jogo que hoje reviverá como comentador para a Sport TV.
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Assistiu ao vivo à final do Mundial 1995 em Joanesburgo. O que recorda desse jogo?

Tudo. Fui como enviado especial do jornal da A Bola e vivi todo o Campeonato do Mundo de forma intensa. Já tinha estado no Inglaterra 1991 e nem se comparava. Foi mais do que um jogo! Foi o jogo! Foi o momento mais marcante da minha vida desportiva. O impacto que teve e toda a vivência que aquilo implicou mexeu comigo. Foi uma experiência esmagadora ver negros abraçados a brancos a festejar o título mundial, como foi imortalizado em 2009 por Clint Eastwood, no filme Invictus.

O que foi mais marcante?

O momento em que Nelson Mandela entregou o troféu Webb Ellis ao capitão François Piennar. O ambiente na rua e no estádio Ellis Park era de festa, alegria pura. Toda a semana que envolveu o dia da final, desde que se soube que o adversário era a Nova Zelândia, com quem tinham uma rivalidade ancestral, foi digna de um filme. Antes do jogo apanhámos um susto enorme nas bancadas, surpreendidos por um avião a rasar o estádio, que só à segunda passagem exibiu uma tarja a dizer: Good Luck Bokke - diminutivo de Springboks. Hoje acredito que foi parte de uma encenação, num aproveitamento claramente político de um evento desportivo e com a benção da comunicação social, que criou o slogan One Team, One Country (uma equipa, um país). Para mim o slogan foi decisivo para a seleção, que até então representava o poder branco, que ditou leis durante muitos anos, para que passasse a ser a seleção de todos os sul-africanos.

Se fosse escrito um guião para a realidade não seria tão bom como foi a realidade que deu o filme...

Completamente. Foi uma epopeia gigantesca. O país precisava muito da vitória para agregar e apaziguar as clivagens sociais radicais que existiam na altura derivados da segregação racial. Só mais tarde soube ao detalhe do papel de Nelson Mandela, que de uma forma inteligente aproveitou o râguebi para acabar com as convulsões sociais. Ele não usou os Springboks como bandeira contra o Apartheid, mas como remédio para um país ferido. E criou todo um ambiente de concórdia à volta de equipa. Ter um negro - Chester Williams - na equipa ajudou. Agora já há quotas para negros na seleção, portanto, as coisas alteraram-se. Quando ele, Mandela, negro, entra em campo com a camisola n.º 6 , do capitão Piennar, um branco, deu um sinal claro que aceitação era e tinha de ser recíproca.

E os All Blacks no meio disto tudo?

Deve ter sido a única vez em que não eram eles a notícia e houve situações pouco dignificantes. Um jornal sul-africano chegou a oferecer uma recompensa brutal ao jogador que conseguisse fazer uma placagem ao Jonah Lomu, que era o melhor jogador da altura, e isso criou um mal estar nos All Blacks e levou os próprios Springboks a pedir ao jornal para acabar com a campanha. Na final, a grande preocupação deles era travar o Jonah Lomu, que sempre que pegava na bola levava dois ou três agarrados a ele.

E o jogo em si...

Foi um Mundial em crescendo para ambas as seleções e África do Sul venceu 15-12. Foi a primeira que teve um prolongamento e que foi decidida com um pontapé de ressalto de Joel Stransky. Mais tarde, ouvi da boca do capitão sul-africano, Sean Fitzpatrick, que na semana antes da final do Mundial o treinador deu umas horas de folga à equipa e uns 17 ou 18 jogadores neozelandeses foram jantar a um restaurante, onde supostamente foram sabotados gastronomicamente. Eles perderam e respeitaram o vencedor com fair play e sem queixas, e só mais tarde reconheceram que muitos jogadores sofreram um desarranjo intestinal nos dias que antecederam a final e por isso jogaram limitados fisicamente. Feitiçaria, como alguns ainda hoje acreditam.

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