Mais um boletim do Bolsonaristão
"O pico da doença já passou..."
O autor deste diagnóstico animador, feito no dia 5 de maio em live do jornal O Estado de S. Paulo, é Guilherme Benchimol, presidente de uma corretora.
Mas o leitor pode reparar que a citação termina com umas reticências, indício de que falta alguma coisa para completar a frase. Cá vai o resto.
"O pico da doença já passou... quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo".
Ou seja, para Benchimol está tudo a correr bem - no seu Brasil. O pior é o resto - mas esse é outro Brasil.
Há semanas, nesta coluna, falou-se da "Belíndia", o neologismo inventado pelo economista Edmar Bacha para descrever um país, o Brasil, que reúne em si mesmo os padrões de vida da Bélgica, pequena e rica, e os da Índia, imensa e pobre.
E inventou-se na mesma coluna uma distinção entre o Brasil - aquele país alegre, criativo e diverso no imaginário de tanta gente - e o Bolsonaristão - o caldo perigoso de ódio e ignorância em que se tornou o mesmo espaço geográfico nos últimos anos.
A frase de Benchimol faz parte do noticiário do Bolsonaristão - não do Brasil.
E serve de preâmbulo ao boletim noticioso sobre o Bolsonaristão que se segue.
No dia 1º de maio, enfermeiros que faziam um protesto silencioso em homenagem a colegas mortos no combate à pandemia, por melhores condições de trabalho e pelo respeito ao isolamento social, foi interrompido por um grupo de apoiantes do presidente.
"Vocês amanhã vão pagar por tudo o que vocês estão fazendo com a nação, seus covardes. Vocês consomem o fruto do nosso suor, nós construímos essa nação. O dia que os empresários pararem de trabalhar nessa terra, vocês não receberão", gritou o bolsonarista Renan Senna, funcionário do ministério da mulher, na direção de uma mulher.
"Vocês querem uma passagem para Venezuela e para Cuba? Eu sinto o cheiro de quem não toma banho direito. Esse cheiro de quem não passa um perfume", vociferou outra bolsonarista, a empresária Marluce Gomes, na cara de uma manifestante.
Notícia seguinte: uma negacionista do coronavírus publicou um vídeo com informação, que rapidamente viralizou entre bolsonaristas, a informar que em Belo Horizonte, "mandaram arrancar todos os caixões para poder fazer o exame e ver se a morte foi por coronavírus mesmo".
"Sabe o que tem dentro dos caixões?", perguntava a bolsonarista, "só pedra e madeira, um monte de caixão cheio de pedra e madeira".
Uma semana antes, um grupo de empresários bolsonaristas contrário às medidas de restrição social organizou uma carreata (passeata de carro) na Avenida Rebouças, na área central de São Paulo. Por ser junto a um hospital, bloqueou o acesso e causou ruído interminável.
Noutro ato ali perto, na Avenida Paulista, negacionistas debocharam dos mortos por covid-19 carregando caixões enquanto dançavam e riam.
Uma socialite de Curitiba, Cristiane Deyse Oppitz, publicou um vídeo a sugerir que as pessoas que cumprem quarentena usem uma peça de roupa encarnada.
"As pessoas que não querem sair do confinamento, que não querem trabalhar e fazer a economia girar porque, segundo elas, o mais importante é a vida, ponham um laço vermelho na porta ou quando forem sair coloquem uma fita vermelha. Aí nós vamos identificar você como pessoa que não quer fazer parte deste grupo que quer trabalhar".
Ela não ficou por aí: "Você não vai ter médico, você não ter farmácia, supermercado, o porteiro também não vai poder atendê-lo por causa da marca na sua porta. Você vai ficar em isolamento total. Até que passe esse grande vírus. Assim, toda a alimentação produzida vai para as pessoas que estão contribuindo e não para as pessoas que não querem contribuir".
Noutra coluna neste espaço escreveu-se há uns meses que quem fizer turismo no Brasil hoje vai ter uma experiência inesquecível, tipo o filme Regresso ao Futuro e outros clássicos do género, porque será transportado no tempo: à Idade Média.
Mas é mais inesquecível ainda: será transportado ao inferno e verá o diabo de perto.