Dois agentes da PSP acusados de agressões e sequestro por detenção ilegal de um homem
Dois agentes da PSP da esquadra da Venda Nova, Amadora, decidiram numa noite de julho de 2015 identificar um homem que seguia a pé na rua só por estar numa zona de risco. Queriam saber se tinha droga: não tinha. E, como não levava consigo identificação, o homem acabou detido, alegadamente agredido e até acusado. Mas recorreu da decisão e o juiz de instrução despronunciou-o dos crimes de resistência e coação e de injúrias, decisão depois confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em resposta a recurso do Ministério Público (MP).
O juiz de instrução ordenou depois a extração de uma certidão do processo e enviou-a ao MP, para que fossem os polícias a ser investigados. Num volte-face completo do caso, os dois agentes foram agora acusados pelo mesmo MP de crimes de ofensa à integridade física qualificada e de sequestro. O agente que assinou o auto, que o MP diz ter elementos falsos, está ainda acusado de falsificação de documento agravada e denúncia caluniosa.
O caso foi relatado pelo DN em janeiro deste ano após a Inspeção-Geral da Administração Interna ter enviado uma recomendação à PSP, à GNR e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a lembrar que as forças policiais não podem identificar pessoas, e sobretudo menores, só por estarem em local considerado sensível se não houver suspeitas fundadas de crime. E que só devem conduzir um cidadão a um posto policial para identificação em último recurso. A IGAI citava mesmo o acórdão da Relação de Lisboa em que foi proferida decisão sobre este caso para dar exemplo do que é o legítimo direito à resistência.
"O não cumprimento dos requisitos legais para a realização da identificação, quer no local onde o mesmo se encontra quer com a sua condução ao posto policial, poderá permitir ao identificando o exercício do direito legítimo de resistência", advertiu então a IGAI, baseando-se no referido acórdão, de abril de 2017, assinado pelos juízes desembargadores Antero Luís e João Abrunhosa, em que se define que "para se proceder à identificação de uma pessoa não basta que o local público em que a mesma se encontra seja um "local sensível", (...), exigindo, contudo, que existam fundadas suspeitas sobre essa pessoa da prática de crimes".
Não era o caso nesta situação, concluíram os desembargadores. E, após esta decisão, um juiz de instrução criminal de Sintra mandou extrair uma certidão que dá origem à presente acusação do Ministério Público contra os dois agentes da PSP. No despacho, datado de outubro, o MP diz que "sabiam os arguidos que o ofendido não podia ter sido detido, porquanto não tinha praticado nenhum crime, que a sua detenção e condução para o interior da esquadra da PSP, contra a sua vontade e onde foi mantido durante quatro horas, constituía um crime, e, não obstante, decidiram deter e manter o ofendido detido no interior da esquadra, sem que tivesse sido praticado pelo ofendido qualquer crime que legitimasse as suas condutas, privando-o assim da sua liberdade bem sabendo que praticavam o facto com grave abuso de autoridade".
Tudo aconteceu no dia 17 de julho de 2015, passavam poucos minutos da meia-noite. O cidadão tinha saído do autocarro n.º 746, e seguia a pé na Rua de Goa, junto ao Bairro 6 de Maio, na Amadora, quando a viatura da PSP em que seguiam os dois agentes parou, ficando atravessada de forma a impedir o acesso a uma passagem pedonal.
"Apesar de não ter sido visto a praticar qualquer crime", diz a acusação do Ministério Público, o homem de 21 anos foi abordado pelos agentes. Queriam saber o que fazia ali e se tinha droga. Houve revista e nada foi encontrado, tendo sido pedida a identificação, que foi fornecida de forma verbal. O jovem disse que residia a poucos metros e que podia ir a casa buscar o Cartão de Cidadão ou então pedir à sua mulher que o levasse.
"Apesar de os agentes inicialmente terem concordado, quando o ofendido se encontrava de costas para aqueles e se dirigia para a sua habitação com o propósito de ir buscar a sua identificação, os arguidos proferiram a seguinte expressão: 'Estás a armar-te em espertinho e não estás a querer cooperar com a gente, agora vais para a esquadra para seres identificado'", refere o despacho de acusação. De seguida, os polícias deram voz de detenção e informaram que iria seguir para a esquadra, "tendo o ofendido começado a esbracejar e a contorcer-se, sentando-se no chão, tudo com vista a dificultar ou impedir que fosse algemado".
"Nesta ocasião, ambos os arguidos desferiram-lhe cotoveladas no pescoço, uma delas provocou a sua queda contra os vasos colocados à porta da farmácia existente naquele local, murros nas costas e no abdómen, desferiram-lhe pancadas na cabeça com as algemas, arrastaram-no e empurraram-no, tendo ficado temporariamente inanimado, momento em que foi algemado e introduzido à força no interior do carro-patrulha", descreve o Ministério Público. Durante o trajeto, o homem levou várias cotoveladas na cara, desferidas pelo agente que ia sentado ao seu lado.
Na esquadra da Venda Nova, o detido ora foi colocado numa sala, algemado, enquanto os agentes ora "o empurravam contra as paredes ora o puxavam, embatendo numa mesa e em duas cadeiras, rasgando-lhe a roupa e provocando, deste modo, dores e mal-estar no corpo e na saúde do ofendido". Sofreu várias lesões, desde lombalgias, escoriações, arranhões a traumatismos, e em consequência esteve quatro dias sem ir trabalhar.
"Não obstante os arguidos saberem que não podiam abordar nenhum cidadão nas circunstâncias em que o fizeram nem que havia qualquer juízo de suspeição", acusa o MP, os arguidos elaboraram um auto em que afirmavam que o cidadão não quis ser identificado e que tentou fugir do local, o que motivou a detenção com recurso à força. No mesmo auto, afirmam que o homem os injuriou e manteve uma postura agressiva, tendo por isso ficado algemado.
Perante isto, o procurador responsável pela acusação diz que os arguidos queriam causar dores, lesões e mal-estar físico ao homem e, no caso do agente que assinou o auto, queria avançar com uma denúncia que "iria dar causa, como efetivamente deu, a um inquérito contra o denunciado, por factos que este agente bem sabia não terem sucedido na forma descrita". Assim, "pretendeu usar este documento para imputar factos falsos ao ofendido, querendo com tal causar-lhe prejuízos, bem como fazer incorrer a ação penal em manifesto erro".
"Os arguidos praticaram os factos supradescritos com flagrante e grave abuso da função em que estavam investidos e com grave violação dos deveres de isenção, zelo, lealdade, correção e aprumo, revelando, deste modo, indignidade no exercício dos cargos para que tinham sido investidos, tendo, como consequência direta, a perda de confiança necessária ao exercício da função."
Refere ainda a acusação que os dois agentes estão com termo de identidade e residência e que deviam também ser suspensos de funções, já que existe o perigo de continuidade de atividade criminosa. "A conduta dos arguidos põe em crise toda a relação de confiança que o Estado deve manter com os particulares num domínio tão sensível como a Justiça e a segurança. Nada garante que não venha a fazer-se uso desse expediente como o descrito nos autos e, deste modo, perfilhamos o entendimento de que existe perigo de continuação da atividade criminosa."
Este pedido não foi aceite pelo juiz de instrução e os dois polícias permanecem em funções. Estão, contudo, sob a alçada disciplinar da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) por violação de deveres devido aos factos constantes desta acusação. Este caso ocorreu meses depois de outra situação, mais grave, que ocorreu na esquadra de Alfragide, em que a detenção de cidadãos originou um inquérito-crime a 18 agentes da PSP por factos ocorridos no interior da instalação policial e cujo julgamento está a decorrer.