Uma fenda que se mantém aberta para o sonho

O Maio de 68 foi "um êxtase da História", disse o filósofo Edgar Morin
Publicado a
Atualizado a

O filósofo Edgar Morin, num dos primeiros ensaios sobre o Maio de 68, considerou o movimento "uma fenda" aberta na sociedade, pela geração do pós-guerra, por rejeitar padrões anteriores, "uma fenda" que, como disse recentemente, "não fechou".

No ensaio "La Brèche", publicado em plena crise de 1968, pela Fayard, o filósofo e sociólogo, autor de "Pensamento Complexo", aproximava o levantamento estudantil ao espírito da Revolução Francesa, estabelecendo um paralelo entre a ocupação da Sorbonne e a Tomada da Bastilha, em 1789, pela reclamação de uma nova sociedade, abrindo uma fenda no tecido social, por onde emergiam sonhos, um sentido poético do quotidiano, novas expectativas e novos valores.

A "'Sorbonne-Bastilha' ensaiou um '89' juvenil", escreveu Morin em 1968, em "La Brèche", acrescentando que o apelo dos estudantes encontrou eco nos trabalhadores mais jovens, ainda não acostumados à "pequena vida" burguesa.

Foi "um êxtase da História", disse ao jornal Le Monde, ainda durante o mês de maio, quando as barricadas se levantavam nas ruas francesas, e cerca de 30% da população ativa, segundo as estatísticas oficiais, tinha então menos de 30 anos.

"A comuna estudantil é quase uma revolução, por ter arriscado, de uma só vez, todas as revoluções sonhadas, e desafiado a ordem estabelecida", escreveu no vespertino francês, a 21 de maio de 1968. "Ela é rica, louca, genial como uma revolução. E, como uma revolução, é uma explosão utópica e, no entanto, bem enraizada no lugar e no tempo".

"Ainda não sabemos se se tornará num idílio ou numa tragédia, se será acarinhada ou acabará em sangue, mas, para todos os efeitos, trouxe já algo de novo, que ainda não tomou forma", mas que tem origem num movimento "de profundidade da juventude", lê-se no texto retomado este ano pelo Le Monde.

A novidade do movimento, afirmou Morin meio século mais tarde, numa entrevista ao Nouvel Obs, no passado mês de março, estava exatamente numa "nova classe" que se afirmara durante a década anterior -- "a classe da idade adolescente" -, que, um pouco por todo o mundo, da Europa à América Latina e aos Estados Unidos, rejeitava "a autoridade do mundo adulto".

Em França, porém, "a luta de classes etárias desencadeou uma luta de classes sociais", não se confinando ao 'campus' universitário, escreveu, em "La Brèche", o então professor de Nanterre, antigo resistente à ocupação nazi em França.

O levantamento estudantil definiu "um modelo para a contestação", defendeu Morin nessas "primeiras reflexões". A ocupação da Sorbonne mimetizou um ato operário, a ocupação da fábrica. "A autoridade da Universidade", a instituição vista como "o bastião" da sociedade burguesa, foi dessacralizada.

Da contestação da reforma universitária, o movimento passou à reivindicação de "uma universidade aberta", que também exprimia uma nova ideia de sociedade, "libertada da exploração" económica e financeira, e das "raízes do poder".

Para Morin, o momento-chave ocorreu em 22 de março de 1968, quando foi ocupado o edifício da direção da antiga Faculdade de Letras de Nanterre, depois da detenção de quatro alunos, que se manifestavam contra a guerra do Vietname. Na altura, Morin tinha 47 anos e substituía o filósofo Henri Lefebvre.

A "explosão" de Nanterre "é simbolizada por Daniel Cohn-Bendit, uma figura ao mesmo tempo 'meta-anarquista' e 'meta-marxista'", recordou Morin em 1978, numa referência ao fundador do Movimento 22 de Março. Havia outros "grupos [políticos], muito mais estruturados". "Mas é preciso não esquecer que Maio de 68 tem outra dimensão, infra ou supra política, que escapa às categorias das análises clássicas", afirmou então ao jornalista Gilles Lapouge.

"O Maio de 68 é uma peça em dois atos. O primeiro tem início nos confins de um subúrbio parisiense, onde uma faculdade, a de Nanterre, se 'incendeia'" em protestos, que se espalham "a Paris, à Sorbonne, a Saint Germain des Prés, à juventude operária". Segue-se a adesão da "nova 'intelligentsia' dos rádios e dos jornais", do pós-guerra. "Em seguida, são os sindicatos e, finalmente, todo o país entra subitamente num estado de paralisação", lê-se no livro "Maio de 68 -- Encontros", que recolhe a entrevista a Lapouge.

O segundo ato "começa em junho", com a dissolução da Assembleia Nacional e a realização das "eleições que asseguram o triunfo da direita", com maioria absoluta. Tudo regressou então a uma aparente normalidade.

A "fenda" aberta, porém, era irreparável, disse Morin a Lapouge. Maio de 68 "mostrou que, onde havia abundância de bens de consumo", "não havia bem-estar moral", "havia infelicidade".

Em 2008, no alvor da crise financeira, numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Morin garantiu que "o mal-estar" na origem do Maio de 68, não só permanecia, "como se agravou".

"O que piorou mesmo foi o facto de termos perdido a fé no progresso", disse então Morin, nos 40 anos do movimento. O sentimento de precariedade é dominante, "tão pouco há esperança, vinda da esfera política", preocupada apenas com o crescimento económico.

O retrato é mantido na entrevista de março passado ao número especial do Nouvel Obs sobre o Maio de 68. "Ao longo do último meio século as conquistas do individualismo contribuíram efetivamente para degradar" a solidariedade social, deixando as pessoas "cada vez mais isoladas", numa sociedade globalizada, disse o defensor de um "pensamento complexo", para a complexidade do real.

Morin, porém, mantém a esperança, porque "a fenda nunca chegou a fechar-se". E dá exemplo de novas formas que, de algum modo, recuperam aspirações do movimento estudantil: "As associações anticorrupção, as que reclamam a taxação das transações financeiras", iniciativas sociais, ambientais, "uma efervescência" que passa ao lado de "governos e partidos".

Falar hoje do Maio de 68, disse o autor de "O Paradigma Perdido", é falar "dessa aspiração tão profunda da humanidade, que os adultos esquecem, por conformismo" -- "a aspiração a viver poeticamente", no "fervor, na intensidade, na comunhão" - e que, como acredita, "há de voltar a exprimir-se de um novo modo".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt