Mads Mikkelsen, ator sem método

Com 25 anos de carreira, é um dos atores do momento. Passou há dias por Cannes para um <em>rendez-vous</em>, é o novo vilão de <em>Monstros Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore,</em> em cartaz, vai entrar no próximo Indiana Jones e descobrimo-lo agora em <em>Cavaleiros da Justiça, </em>de Anders Thomas Jensen, um muito recomendável inédito para ver nos canais TVCine.
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Numa entrevista à GQ britânica no passado mês de abril, Mads Mikkelsen referiu-se ao chamado method acting como uma "treta". Disse várias outras coisas interessantes na mesma entrevista, mas foi esta crítica desempoeirada que circulou e deu azo a notícias só sobre o facto de o ator dinamarquês considerar que o esforço de encarnar uma personagem até ao limite tem algo de pretensioso e é um chamariz mediático para fazer crescer a opinião pública - e, consequentemente, ganhar prémios. Não se fica por aqui na demarcação de um certo status quo. Por exemplo, evita as redes sociais, por não lidar bem com o espírito conflituoso online, em matéria de celebridade, diz que não há um tipo de fã Mads Mikkelsen (quanto muito, há os fãs da série Hannibal, com a sua versão do lendário Dr. Lecter), e sente repulsa por esta cultura contemporânea em que "as pessoas são canceladas a torto e a direito", como se "toda a gente estivesse à procura de uma controvérsia".

O homem tranquilo que é o rosto do anúncio da cerveja Carlsberg e protagonista do oscarizado Mais Uma Rodada, de Thomas Vinterberg - um dos filmes sensação de 2020, sobre um grupo de professores de meia-idade que decide experimentar dar aulas com um nível controlado de álcool no sangue -, acha piada à ideia de um remake americano com Leonardo DiCaprio no seu papel, embora não deixe de pressentir que "eles vão torná-lo mais uma comédia ou um filme moral sobre os perigos do álcool." E acrescenta: "Mas não me importo nada. Se quiserem convidar-me para ser um professor de inglês com um sotaque engraçado, eu aceito."

Quem fala assim não tem qualquer problema em habitar os dois mundos: ora vemo-lo em filmes independentes no reino da Dinamarca ora em blockbusters de Hollywood, sem método de interpretação que iniba a passagem de um tipo de projeto a outro. Uma das especialidades deste dinamarquês, tido como uma espécie de figura de orgulho nacional, são os vilões sofisticados. Desde o referido Hannibal Lecter, passando por Le Chiffre (007: Casino Royale), e Kaecilius (Doutor Estranho), até ao mais recente Gellert Grindelwald de Monstros Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore, a sua expressão escandinava tem servido bem o registo. O que não significa uma limitação performativa, bem pelo contrário.

Muito elogiado nesta substituição de Johnny Depp no universo Harry Potter, revelando camadas de subtileza que antes não se vislumbravam no dito arqui-inimigo de Dumbledore, Mikkelsen foi sempre um intérprete de peso. Recorde-se apenas The Hunt - A Caça. Não há como separar o filme de Vinterberg da sua tremenda representação de um homem falsamente acusado de abuso sexual de uma criança. Um papel que lhe valeu o prémio de melhor ator no Festival de Cannes, em 2012. Certame onde voltou em 2016 como elemento do júri presidido por George Miller, e onde há dias marcou presença como convidado da secção Rendez-vous avec... para dar uma masterclass. Aí falou de como gosta de trabalhar com realizadores que têm paixão e de como procura sempre o lado humano das suas personagens, independentemente da categoria de vilão. Até respondeu ao convite de alguém da plateia para ir beber um copo à noite com os amigos...

Nesta descontração entre os tais dois mundos, Mikkelsen apela a uma diversidade de espectadores, mas em termos de projeção internacional é indissociável da máquina hollywoodesca. Nas franchises acumula ainda Star Wars (-Rogue One) e é um dos nomes do quinto Indiana Jones, ao lado de Harrison Ford e Phoebe Waller-Bridge, previsto .para chegar às salas em junho do próximo ano.

Com 56 anos e 25 de carreira, refletidos numa filmografia de mais de 50 títulos ecléticos, Mads Mikkelsen veio da ginástica e da dança para o território do drama (estudou teatro) lançando-se no cinema com o thriller Pusher (1996), de Nicolas Winding Refn. Desde então, construiu o que está à vista: um percurso aberto às oportunidades que surgem, mas onde prevalece uma ideia muito vincada de que o cinema está para além da cultura do debate. "Existe uma coisa que é mais interessante: seres humanos, almas humanas, interações humanas." Disso há com fartura em Cavaleiros da Justiça, o filme que protagonizou depois de Mais Uma Rodada e antes de Monstros Fantásticos. Um fabuloso inédito nas nossas salas, agora em estreia exclusiva no TVCine Action (fica também disponível no TVCine+).

O título Cavaleiros da Justiça, e a própria imagem agressiva de Mikkelsen com cabelo rapado e barba grisalha, enganam bem: olha-se para a apresentação e parece só mais um filme de vingança, com um macho alfa e a velha fórmula de ação a servirem um elenco dinamarquês. Porém, a criação do realizador e argumentista Anders Thomas Jensen, de quem o ator é um habitué, traz outros desígnios na manga.

O início dá conta de uma cadeia de pequenos eventos que vai desembocar numa tragédia. Estamos na Estónia, ao que parece a alguns meses do Natal, quando uma menina pede ao tio uma bicicleta azul, recusando a de cor vermelha que o vendedor de rua lhe mostra. "Quer que mande vir uma?", pergunta ele. A resposta fica no ar, enquanto o mesmo comerciante faz uma chamada suspeita para a Dinamarca e alguém vai à estação de comboios roubar uma bicicleta azul acorrentada a um poste. Esse velocípede pertencia a uma adolescente, Mathilde, que agora sem ela depende da boleia da mãe... e o carro não pega. Resultado: as duas vão apanhar juntas o comboio, e numa carruagem cheia, Otto, um matemático desanimado mas cívico, dá o seu lugar à mãe de Mathilde, acontecendo logo de seguida um acidente brutal que tira a vida a essa pessoa a quem ele fez a gentileza (e que provavelmente teria sobrevivido se não tivesse aceitado o lugar).

Não será spoiler contar todo este bloco de abertura, porque é a partir dele, mais precisamente da sua conjugação de acasos, que se gera o "filme de vingança" que não o é. Entra em cena Markus, a personagem de Mads Mikkelsen em modo de homem-pedra, um comandante militar, pai de Mathilde, que não quer a ajuda de psicólogos para lidar com o luto. Mas do outro lado do drama está Otto, especialista em estatística e probabilidade, que acaba por apresentar uma teoria muito segura sobre o "acidente" que causou a morte da mulher de Markus, e que envolverá um gangue perigoso chamado "Cavaleiros da Justiça". Com o apoio de dois amigos hackers, ele consegue convencer Markus da sua versão dos acontecimentos, e unem-se no que vem a ser uma terapia de grupo sanguinária e doce. Com espaço ainda para a personagem de um jovem ucraniano, que se revela uma das figuras mais comoventes nesta comédia violenta, absurda, melancólica e profundamente terna.

Cada guinada tonal vem da escrita inteligente e descabelada do enredo de Jensen, que pega na psicologia de cada uma das personagens, primeiro para a fazer em picadinho, e depois para esboçar as notas de humanismo que servem o edifício complexo da história. Aqui temos um Mikkelsen granítico, de sangue-frio, que não pestaneja enquanto parte o pescoço a alguém ou diz à filha que a religião é uma fantasia e quando as pessoas morrem desaparecem de vez, não há cá almas nem anjinhos. Portanto, um ser quebrado algures no seu mecanismo interior, que, como os outros, está a precisar de emoções fortes. Coisa que não falta a Cavaleiros da Justiça, um golpe de asa ao estilo dos irmãos Coen, mas com uma dose de empatia e coração grande que se afina de modo inesperado dentro do argumento doidivanas.

dnot@dn.pt

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