Macron, maometanos e o "laicismo praticante"
Quanto ao timing da conjugação e dos factores, tudo recomeça com o aparato mediático do início do julgamento dos assassinos do Charlie Hebdo. Chamá-los de terroristas é dar-lhes um título, erro comum do ocidental indignado. Começa o circo à volta deste assunto, em início de setembro e o professor Paty vê neste início de ano letivo oportuno momento para lançar o debate com os seus alunos sobre a liberdade de expressão, usando as caricaturas que já tinham causado a ira junto da Ummah, a Nação Islâmica. Nada de ofensivo, já que para quem tem cidade (de civismo), já está na fase seguinte, do julgamento. Se quiser, o episódio das caricaturas não passou disso, de um episódio e o que o professor Paty fez foi dar-lhe jurisprudência, colocando o assunto no passado, dando-lhe a perspectiva necessária para o debater livremente. No limite, a anteconclusão deste debate seria: o que é que aprendemos com este episódio? E, continuar o debate, já que, para nós, Hollywood nos ensinou que o céu é o limite. Há, desde logo e, também, um problema de referências, neste problema de comunicação e código complexo e sem fim.
Cingindo-me ao essencial, para não entrar na floresta de enganos que o tema sempre facilitou, o professor Paty perdeu a vida "por bonecos", como ouvi dizer num café no dia do ataque à redacção do jornal satírico em questão, em 2015. Foi vítima de mais um assassino intoxicado pelo que a religião tem de pior, o fascismo das linhas vermelhas e tornou-se aquilo que o presidente francês referiu como "o rosto da República".
Foi o de ter começado a aplicar a "contabilidade islâmica", a qual se baseia num jogo de compensações que o islão sugere aos muçulmanos, através das "sagradas escrituras corânicas". Passo a explicar, o drama diário dos muçulmanos, todos, sem os categorizar em radicais ou moderados, em letrados ou iletrados, no seu íntimo, são as compensações diárias que os seus actos lhes poderão valer no "livro das boas ações". Exemplo: uma oração feita na mesquita e em congregação vale 27 vezes mais, no tal livro em bênçãos, do que feita isolado em sua casa, por exemplo e por aí afora. Competição normal na adolescência de um destes praticantes é "lutarem" por um lugar na primeira fila logo após o chamamento para a oração, o que também confere mais créditos do que as outras filas. Quantas vezes ouvi dizer, orgulhosamente, "primeiro Sauf, muito importante", a jovem que chegava sempre meia hora antes do Muezzin começar a cantar a ladainha do chamamento, a cada sexta-feira, aqui na Mesquita Central de Lisboa.
O erro de Macron foi ter alinhado nesta lógica compensatória após o início do referido julgamento, tendo-a levado ao extremo após a tragédia de Yvelines, da forma mais pública possível. Ou seja, ter um privado a republicar as caricaturas é uma coisa, ter regiões e câmaras municipais a projectarem nas paredes dos seus edifícios as mesmas é naturalmente provocação. Macron, cujo Estado de direito teve a superioridade cívica de levar os assassinos do Charlie Hebdo à barra do tribunal, seguindo a cartilha dos democratas, sente-se agora no direito de compensar o incompensável através de uma exibição pública dos "bonecos do pecado original", como que querendo dizer "estou na minha terra, posso ofender quem quiser". Compreendo-o, desta forma sempre distrai o eleitor e se livra da crítica do "então agora é que fechas aquela mesquita que há 20 anos propagava o discurso do ódio e todos o sabiam? Já vens tarde, Emmanuel!"
Dá-se também um outro timing e conjugação de factores que não é nada inocente, já que neste preciso fim de semana celebra-se o Mawlid an-Nabawiy, o aniversário do nascimento de Maomé. Imagine o que seria viver num país islâmico, o que não é difícil, cada vez há mais portugueses no arco islâmico da Mauritânia à Indonésia e ser bombardeado durante o mês de Dezembro com uma política de Estado abertamente ofensiva ao profeta Emanuel Jesus. Há que sair do conforto da superioridade e vestir a pele do outro. Certa e felizmente não assassinaria ninguém, mas não deixaria de sentir o incómodo que hoje apenas pertence ao outro.
Os populismos, os populistas da "mesquita de vão-de-escada" que passam a ter a prova no papel e a poderem dizer "está aqui, há quanto tempo vos ando a falar disto" e os "Erdoganes desta vida", que, na competição pela liderança do islão sunita, não perdem oportunidade de explorar este maná de mal-entendidos que nunca os catapulta para o objetivo que todos estes líderes pretendem atingir, o estatuto de papa islâmico e de terem o número de telefone centralizador dos problemas e desafios da Ummah. Não os catapulta para essa utopia, mas permite-lhes sobreviver politicamente com estes ganhos menores oferecidos pelo adversário e que no presente se materializam num boicote maciço aos produtos franceses por todo o mundo islâmico. País que não boicotar a França não é país sério, já corre por aí. Fait-divers que ofuscam sempre o cerne do problema que se materializa à cabeça com a falta de hierarquia, que permite a visão e perspetiva de um "islão romantizado" e incompatível com os tempos urbanos, fazendo dos muçulmanos maometanos cegos, sem filtro nem perspectiva, porque fora de tempo sempre que estão fora da sua caixinha moral.
Encontro no DN este espaço de liberdade, que me permite desejar a todos/as um Eid Mawlid Moubarak, que é como quem diz feliz Natal em árabe, sem o dizer, já que maometano que se preze não aceita, nem esta, nem outras inovações!
Politólogo/Arabista www.maghreb-machrek.pt
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia