Lukas Dhont: "Girl tem um efeito visceral!"
Numa altura em que o cinema e o entretenimento em geral (em Londres, no West End, um dos maiores sucessos é o musical Jamie, sobre um adolescente de Sheffield que se torna drag queen tornam acessíveis temas tabu como a homossexualidade entre os adolescentes, surge Girl, de Lukas Dhont, que gira em torno de uma história verdadeira de um rapaz bailarino que luta para mudar de sexo. O filme é baseado numa história verdadeira e é já um conto de bandeira pelos direitos da comunidade transgender.
Sensível (tem coragem para estar sempre à altura da personagem) mas também maniqueísta (ao qual não será indiferente todo aquele artificialismo de uma câmara algo exibicionista), Girl é já um dos filmes mais premiados do ano, após ter recebido a Câmara de Ouro (melhor primeira obra) em Cannes. Em Portugal foi estreado no último Queerlisboa, onde acabou por não ter muito impacto mediático.
Dhont filma a dolorosa experiência de descobrirmos o corpo errado, ou seja, as dores de crescimento de uma jovem no corpo de um rapaz. Victor quer ser Lara e é no ballet que quer assumir a sua diferença, mesmo tendo um pénis pelo meio. Pelo meio, vai ter de se esforçar nos ensaios de um ballet e adaptar-se à sua condição num meio social e familiar que pode não estar preparado para a mudança de sexo, não obstante o apoio do pai e do seu irmão mais novo. Ao mesmo tempo que tenta mudar de sexo, Victor/Lara começa a perceber o que é ser uma mulher.
Goste-se ou não, é um filme fundamental para afastar preconceitos num tema que em Portugal ainda polariza muito. Girl é um testemunho de combate sobre o direito de sermos livres e donos do nosso corpo e sexualidade. Está nomeado ao Golden Globe de melhor filme estrangeiro e deverá estar na corrida dos Óscares na mesma categoria, mesmo quando já se anuncia o seu lançamento na América na Netflix, já em janeiro.
Na história verdadeira, que o realizador descobriu num artigo, a bailarina chama-se Nora Monsecour e curiosamente não é bailarina clássica mas sim "performer" de dança moderna.
Em Cannes sei que dormiu na sessão dos concorrentes da Câmara de Ouro durante a projeção de gala de Han Solo- Uma História de Star Wars, de Ron Howard...
Ah, sim. Adormeci, foi uma bela soneca! O filme é tão aborrecido. Olhei para o meu lado e toda a gente estava a passar pelas brasas! Quando estávamos a escrever Girl, uma das nossas preocupações era fazer um filme que nunca fosse secante.
Talvez por isso haja sempre um trabalho constante com a banda-sonora, como se fosse uma experiência para os sentidos...
Queria precisamente isso. Falei com todos os membros da minha equipa e o nosso mote foi dar ao espetador uma experiência física. Como se transmite isso? O desafio era a forma e o conteúdo estarem alinhados. O tom passava mesmo pela forma e Girl é um filme sobre a nossa relação com o corpo. E isso pode ser tão belo mas também tão destruidor... A dificuldade era passar isso como experiência sensorial. Com a música queríamos transmitir a sensação da pele cortada.
Como assim?
Fomos à procura de sons instrumentais que sugerissem coisas afiadas. Para além da música, queríamos ir pela questão física.
Filma uma história verdadeira, mas prefere ir sempre para onde nos leva a ficção.
Sim, não queríamos dar voz às opiniões tão "demodé", tão século XIX sobre género. Isso já está feito e conhecemos de ginjeira essas vozes de antagonismo que prevaleciam na história verídica. Decidimos então afastar os vilões.
Ao fim ao cabo, esta personagem acaba por ser uma criação sua.
Sim, ela é o meu ponto de vista. Por outro lado, ela é mesmo Nora, mas aqui o verdadeiro vilão é a sua própria negação com o seu corpo. Quando a conheci, dizia-me muitas vezes: "só quero ser uma rapariga". Isso é um fator com o qual muitos se podem reconhecer. Pessoalmente, quando estava a crescer, odiava-me por ser gay. Apanhei com o ódio da sociedade e deixei-me contaminar por ele. É o que lhe digo: esta história vai bater na identificação de muitos, em especial da comunidade LGBT. Diria que é mesmo muito importante falar desse auto-ódio. Mas creio que a personagem é muito complexa: acaba por não se vitimizar e nem está em guerra contra a sociedade, apenas com ela própria. Dessa maneira, o filme ficou muito mais humano.
Como é que descobriu este ator, o Victor Polster?
Ele é espantoso! Foi o maior presente que recebemos. Quando estávamos a escrever o papel pensámos que nunca iríamos encontrar esta bailarina. Brincávamos inclusive que teríamos de recorrer a uma atriz experiente de 45 anos e, depois, arranjar um artista de maquilhagem genial!
Ele veio da dança clássica e felizmente também tinha o dom de representar. Sabe se agora ele vai querer seguir a via da interpretação?
Penso que sim! Trata-se de um rapaz muito maduro e capaz de perceber a complexidade de um papel. O Victor tem todos os instrumentos de um ator. Mais, tem também uma empatia do outro mundo. Por outro lado, quer continuar a dançar e creio que o seu foco tem de ser por aí. De momento, o que precisa é de ser bem orientado.
O Lukas também não precisa de uma certa orientação agora, sobretudo depois do sucesso no Festival de Cannes?
Sim! Apoio-me no meu argumentista. Ele faz com que não fique completamente insano com tanta aclamação! O que se passa é que estamos já a escrever mais um filme e, estando tão concentrados ,acho que perco o pé em tudo o que se passa à volta de Girl. Essa dificuldade de estarmos a escrever um filme deixa-me muito com os pés na terra. O próximo será muito diferente...
Por outro lado, faz questão de jogar esse jogo da temporada dos prémios e tem estado em quase todos os festivais...Falhou apenas o Queer Lisboa.
Sim. Estou muito orgulhoso de Girl, se o abandonasse nesta altura seria cruel, sendo que acredito que o filme possa vir a ser bastante popular.
Vem da Bélgica, o país dos irmãos Dardenne, porventura os pais de um certo realismo social no cinema europeu. Aqui dá-me ideia que convoca essa sensação do real mas com todos e mais alguns mecanismos cinematográficos...
Sim, encontrei o realismo pós-Dardenne! (risos)Mas sinto que os filmes deles estão a ficar menos crus. Na escola aprendi cinema que combinava ficção e documentário. Creio que isso está patente no estilo do filme. Não sei se posso dizer isto, mas está lá a assinatura que quero colocar no cinema. Por um lado, está a encenação de um certo tipo de intimismo e realismo, mas por outro, uma aposta estética disso mesmo. E é claro que me sinto influenciado pelos Dardenne, eles são uns mestres nesse estilo do docudrama, mas não quero ser um sociorealista. Quero manipular, quero um outro estilo. Sou fã dos Dardenne mas a linguagem deles não é para mim. Raios! Eles já o fizeram, não quero fazer o mesmo. Encontrei em Girl uma maneira de filmar que vou querer seguir no futuro.
Em Lisboa, no Queer, o filme venceu o prémio do público. Parece que Girl toca realmente as pessoas e há até relatos de espetadores a reagir com dor física em certos momentos...
É sempre assim! As pessoas sentem corporalmente que algo vai acontecer e querem rejeitar esse momento que agora não vamos revelar!! Não mostro nada explicitamente mas o filme tem um efeito visceral.
Diria que é uma obra pudica?
Sim... Mas ainda sobre essa cena já famosa, só posso dizer que para um realizador é uma alegria - forma e conteúdo a convergirem! Ainda ontem soube que uma rapariga desmaiou em pleno cinema...