Luísa e José Luís Ducla Soares: "O meu irmão ensinou-me a contar histórias"

Luísa escreve livros para crianças desde sempre e vai fazê-lo até morrer. O irmão Luís, dez anos mais novo, é médico, tem 67 anos e acaba de publicar o seu primeiro livro infantil - A Flor do Lirolar. Juntámos os dois manos Ducla Soares, que nos devolveram as suas histórias, cheias de doçura
Publicado a
Atualizado a

Acaba de lançar o livro A Flor do Lirolar. Como é que isto acontece? A sua irmã leva uma vantagem de 155 livros publicados...

José Luís Ducla Soares (J.L.D.S.) - Em primeiro lugar não se pode confundir uma escritora que é criadora de factos literários comigo, que me limito a transportar desde a infância um conto que ouvi. Talvez lhe tenha juntado uma coisita, é possível, não sei. Os nomes das personagens seguramente que foram inventados por mim. Eu sempre contei estas histórias aos meu filhos, depois aos meus netos e aqui há uns anos, quando o meu neto mais velho começou a perceber as coisas, teria então uns 5 ou 6 anos, resolvi escrever-lhe a história. Peguei naquele papel cavalinho, fiz uns bonecos e escrevi a história como se fosse um livro. Fiz uns dez exemplares, que lhes dei e nunca mais pensei no assunto. Até que um dia estava à espera do meu neto, que tem aulas de violino, e ao meu lado estava a mãe de um dos miúdos que também estava a ter aulas e não sei bem como, contei-lhe que tinha feito isso e ela disse que era decoradora e assim nasceu a hipótese de ela decorar este conto.

Foi um processo que teve vários tempos. O tempo da escrita, o tempo de fazer o livrinho para os netos, até o tempo de se voltar quase a esquecer dele. Pensa continuar a escrever ou vamos ver o que o tempo lhe diz?

J.L.D.S. - Como lhe disse, eu sou um mero transportador desta história. Ela [a ilustradora, Malalonga Jorge] ficou muito entusiasmada, já me falou em temas que podiam ser muito giros. E depois há um conto, mas esse conto é propriedade da minha irmã, que ela me contava quando eu era pequeno. [dirige-se à irmã] É o único conto que eu me lembro de me contares. Mas que ela nunca pôs em escrita que era a história do Zé Pelinha, que era um pobre desgraçado miserável que, para ganhar dinheiro, ia a uma faculdade de medicina com intenção de vender o esqueleto, e vendeu o esqueleto. Só que inesperadamente tiraram-lhe o esqueleto em vida e o homem ficou uma pelezinha que era arrastada pelo vento e foi fazendo todas as suas peripécias que iam acontecendo, já não me lembro mas isso demorou muito tempo...

L.D.S. - São coisas loucas porque ele era tão fininho que se metia pelos canos e pelas canalizações de um lado para o outro, fazia coisas de espionagem.

Quando é que contava esta história?

L.D.S. - Esta história demorou três anos. Porque eu era uma espécie de Sherazade de trazer por casa, o irmão era um bocadinho endiabrado e uma das maneiras de ele ficar mais sossegado era a ouvir histórias. Mas ele não gostava destas histórias muito tradicionais porque queria coisas aventureiras e um bocadinho mais loucas e com algum humor. Então eu fui inventando as personagens que pensei que eram mais de acordo com os gostos dele e uma dessas foi esse Zé Pelinha. Simplesmente nunca a escrevi porque a história era tão grande.... eu queria passar para outras histórias, mas ele gostava da personagem e não me deixava mudar de personagem. Isto tornou-se uma espécie de novela em que eu todos os dias lhe contava um novo episódio daquela história. Aquilo demorou, ao que me lembro, três anos. Ora, já nem me lembro de todos os episódios. Mas uma história de três anos também é demais para qualquer paciência, não é?

Quando é que contava histórias ao seu irmão?

L.D.S. - Eu contava-lhe em casa porque nós éramos e somos três irmãos. Eu sou a mais velha, tenho dez anos de diferença dele. Quando ele tinha 4 anos eu tinha 14, ele começava a gostar de histórias e eu ia-lhe contando.

Mas não contava histórias à hora de dormir?

L.D.S. -Não. Eu detesto contar histórias antes de dormir, olha que nunca contei. Nem ao meu irmão, nem aos meus filhos, nem aos meus netos. Porque eu gosto muito de histórias de manter as pessoas acordadas porque acho que as histórias têm outro impacto se tiverem aventura, se tiverem humor, se puserem as pessoas a pensar.

Quer que elas acordem. Mas no caso do seu irmão queria que ele acalmasse um bocadinho...

L.D.S. - Sim, um bocadinho mas que se mantivesse acordado.

E tinham algum ritual, sentavam-se em algum sítio específico?

L.D.S. - Nós só tínhamos um sítio onde estar, uma salinha que havia em casa da minha mãe. Uma salinha de estar que era também quarto dos brinquedos e tinha um armário cheio de brinquedos, tinha uma carpete um bocado velha porque nós íamos estragando e tinha um sofá de duas pessoas. Nós sentávamo-nos nesse sofá e era aí que eu contava as histórias.

E essas histórias foram aquilo que, de alguma forma, a levaram a escrever...

L.D.S. - O meu irmão foi a pessoa que mais me inspirou. Foi quem me ensinou a contar histórias. Porque ao longo de vários anos em que as contei eu fui compreendendo como é que se fala com uma criança, quais são as coisas de que ela gosta. Claro que as crianças são todas diferentes mas há certas coisas que são comuns e ele foi também o meu melhor crítico até hoje. Se uma coisa não lhe agradava dizia "não quero isso", se lhe agradava eu via o sorriso dele. Portanto, foi ao longo desses anos que eu aprendi a escrever histórias para crianças. Ele foi o meu mestre.

E agora o seu mestre lança um livro infantil. Quando ele lhe contou o que ia fazer, como foi?

L.D.S. - Olhe eu fiquei bem contente. Mas para mim não foi assim uma surpresa tão grande. Ele é uma pessoa muito dedicada às artes, ele é músico...

O José Luís é médico [Medicina Interna]. Não pensou em trazer os seus temas para o mundo infantil?

J.L.D.S. - Essa é uma pergunta muito hipotética. Não sei se teria capacidade de inventar uma história mesmo. Eu tenho alguma experiência com miúdos pequeninos. A técnica que tenho para os provocar é com realismo fantástico à García Márquez. Uma coisa mais louca em que, de preferência, eles possam participar prende-os completamente a uma história. Mas como digo, não tenho planos para o futuro. Vou fazer 68 anos e dentro de pouco tempo poderei reformar-me. Sei lá se posso fazer uma história para crianças.

E uma história com a sua irmã?

J.L.D.S. - A minha irmã é uma criadora...

L.D.S. -Teria muito gosto nisso!

J.L.D.S. - ... está num nível completamente diferente.

L.D.S. - ... não é nada diferente. Eu faço histórias com tanta gente. Já fiz três livros com miúdos de 4 anos e tenho gosto em fazê-los e é engraçado porque vou descobrindo o tipo de imaginação deles, o tipo de vocabulário.

Como encaram os telemóveis, os tablets, essas coisas todas que dominam as atenções dos miúdos?

L.D.S. - Para eles é de tal forma importante que acho que será horrível um autor que se desligue disso.

Mas a Luísa até hoje escreveu sempre livros...

L.D.S. - Sim, mas eu desejaria fazer livros CD e nenhuma editora quis, eu penso que talvez por direitos de autor.

José Luís, como vê agora o seu livro? Vai a escolas fazer leituras ou fica pelo seu consultório...

J.L.D.S. - Eu não estou no consultório porque trabalho só no hospital [de Santa Maria] e na faculdade... Isto tudo é novo para mim. Nunca pensei que ia estar aqui a dar uma entrevista... A minha irmã até já me disse "olha se calhar vou pedir-te para ires assinar coisas para a Feira do Livro". Eu nunca pensei que isso me pudesse acontecer...

Como é que escolheu os nomes das personagens?

J.L.D.S. - O nome do herói foi o meu, obviamente. É por isso que o herói é o José Luís, os outros... olhe, não foram por agressão a ninguém, são outros nomes só [risos].

Também tem alguma heroína, Luísa?

L.D.S. - Não, nunca uso o meu nome. Tenho muita bicharada e também muitas pessoas mas nunca ponho o meu nome.

Cresceram onde?

L.D.S. - Junto à Torre de Belém, em Pedrouços. Da nossa casa à Torre de Belém eram dois minutos a pé.

J.L.D.S. - ... numa altura em que não havia o resto do Bairro do Restelo. Eu nasci em 1949, aquilo para cima eram quintas.

L.D.S. - E para ir à Torre de Belém havia uma passagem. Era super--rápido.

Então a Torre de Belém era o vosso parque infantil...

L.D.S. - Era o nosso parque infantil, era a nossa praia, não de tomar banho, mas de brincar.

E como veem esta Lisboa cheia de gente, a quererem limitar o número de entradas na Torre de Belém?...

L.D.S. - A Torre de Belém não tinha ninguém. Sabe como ela era no meu tempo e parte do tempo dele? Para já, não ficava dentro de água. Era uma praia um bocadinho nojenta para onde iam os miúdos filhos de pescadores, que ali havia muitos pescadores. Os miúdos iam para lá tomar banho e tomavam banho nus. Havia golfinhos no Tejo...

J.L.D.S. - ... havia uns pescadores que pescavam linguados e camarões e que iam vender lá a casa.

L.D.S. - ... e eles paravam ali na praia da Torre e uns iam vender a casa e outros iam ali e compravam peixe na própria praia da Torre de Belém.

Continua a ir a escolas?

L.D.S. - Sim, sim. Eles ficam contentes e [os professores] preparam a ida dos escritores às escolas.

Os miúdos já lhe fizeram perguntas às quais não conseguisse responder?

L.D.S. - Sim, há muitas às quais eu não consigo responder. Por exemplo, qual é o livro de que eu gosto mais. Eu não sei porque eu tenho lido tantos de que gosto, não vou eleger um. Às vezes também me fazem perguntas muito pessoais. Outras que eu não estou à espera. Por exemplo, anteontem perguntaram-me qual era o meu pior pesadelo. Depois perguntam-me quais são os meus medos. E outras coisas um bocadinho estranhas. Por exemplo, eles pensam que eu sou uma pessoa famosa e perguntam como é ser uma pessoa famosa. Bem, a minha vida é fazer o que toda a gente faz e além disso escrever. Depois perguntavam como é que são os seus seguranças? A minha segurança é a gata [risos]. E depois, de que cor é a sua limousine? A minha limousine é um Fiat com 11 anos, coisas assim que os miúdos às vezes têm a noção de que a vida de um escritor... Como é que é a sua piscina? A minha piscina é a banheira.

Assim se percebe a influência que tem neles...

L.D.S. - Mas há coisas que uma pessoa diz que podem ter uma influência horrível. Uma vez um miúdo disse-me assim: até quando é que pensa escrever? Eu disse que penso escrever até morrer. O miúdo devia ter uns 6 anos, começou a chorar de uma maneira... eu pensei, uma pessoa às vezes diz coisas...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt