Luis Sepúlveda: o escritor que era atropelado pelas suas histórias voltou à Póvoa
A pandemia não escapou à 22ª edição do encontro literário Correntes d"Escritas e entre as várias sessões virtuais postas online a partir da Póvoa de Varzim ficou claro o quanto o tema pode ou não inspirar os escritores de língua portuguesa e espanhola. Foi o caso de Pepetela, que afirmou "Eu não vou escrever sobre isto!" Para o escritor angolano, depois de Albert Camus ter escrito A Peste, um livro que releu recentemente, pouco mais há a dizer: "Não vale a pena!" Já a escritora Lídia Jorge não foge à necessidade de deixar para o futuro um registo destes tempos: "Receio que o que escreva fique desatualizado devido a este desastre à escala global, em que parece termos regressado ao tempo da Grande Guerra, mas sem inimigo." No entanto, se Lídia Jorge considera importante escrever sobre a pandemia, é necessário que se "encontre uma metáfora para poder desocultar a realidade de modo a deixar alguma coisa escrita para o futuro."
É ao apostar nesta obrigação, que Lídia Jorge recupera a grande sombra evocativa que existe nesta edição das Correntes d"Escritas, a da homenagem ao escritor Luis Sepúlveda, falecido devido à covid-19 pouco depois da anterior edição do encontro. "A frase de Sepúlveda obriga-me a isso!" A frase é o tema do encontro moderado por Carlos Vaz Marques com a escritora, Pepetela e Laborinho Lúcio: Só voa quem se atreve a fazê-lo. E Sepúlveda passa a ser o eixo da sessão, bem como das da maioria, com Pepetela a revelar que nunca conheceu o escritor: "Vi-o ao longe". Mas não lhe falta opinião sobre a obra: "É o exemplo de um escritor que escrevia coisas de encantar, que era coerente e um defensor da humanidade. A melhor homenagem que se lhe pode fazer é pegar no trabalho dele e continuar". Quanto a Laborinho Lúcio, este lembra-se de que ao deixar as últimas Correntes "foi Sepúlveda a última pessoa que vi. Não havia uma relação chegada entre nós mas tinha uma ideia de que ele era atropelado pelas suas próprias histórias quando falava com as pessoas".
Quanto ao tema da sessão, Lídia Jorge não tem dúvidas: "Só voa quem se atreve a fazê-lo. É uma frase que lembra aos escritores o que já sabem e que se não tiverem coragem para perder o pudor não se contrapõem ao mundo real com algo diferente".
A 22ª edição esteve em dúvida devido à pandemia, principalmente por não permitir a ida da habitual centena de escritores até à Póvoa nem à assistência tradicional de milhares de interessados em estar nos espaços onde decorrem os eventos. No entanto, a história que está por trás desde a primeira edição em 2000 fez com que se mantivesse, mesmo que num formato digital e em que não existe o debate e a convivência que as caracteriza. "As Correntes foram pioneiras e inovadoras, tendo-se imposto no panorama literário português e internacional, mesmo sendo realizadas numa cidade periférica e afastada da centralidade", dizem os responsáveis. Intenção que o presidente da República fez questão de reafirmar na sua intervenção na abertura do encontro ao realçar a "persistência e resistência" da organização com a "mesma dinâmica de sempre". Marcelo Rebelo de Sousa não esqueceu Luis Sepúlveda e destacou o facto de a edição ter sido dedicada a um "escritor amigo do Festival e de Portugal e dos portugueses, cuja ultima aparição pública foi justamente na Póvoa de Varzim, há precisamente um ano".
O primeiro momento das Correntes aconteceu como o anúncio do vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa, desta vez atribuído a Maria Teresa Horta e ao seu livro Estranhezas. O júri, composto por Daniel Jonas, Inês Pedrosa, José António Gomes, Luís Caetano e Marta Bernardes, considerou a obra "uma exaltação da paixão, da beleza, do real concreto e efémero eternizado pela deslocação da esfera do tempo para o espaço de escrita". As sete partes em que o livro está dividido - No Espelho, Da Paixão, Da Beleza, Alteridades, Tumulto, Ferocidades, Diante do Abismo - revisitam os temas centrais da obra de Teresa Horta. No caso do Prémio Literário Fundação Luís Rainha, que distingue uma obra literária inédita cuja temática seja a Póvoa de Varzim, o vencedor foi António José da Assunção com o original Como Ondas no Mar.
Em seguida, foi inaugurada a exposição de Daniel Mordzinski, Diário Fotográfico Íntimo de uma Amizade, em que o fotógrafo recupera muitas das imagens que captou ao longo de anos a Sepúlveda, sendo uma delas a série que resultou de um livro comum sobre a revisitação do Chile pelo escritor. Outra das iniciativas foi a apresentação da Revista Correntes d"" Escritas, a número 20, inteiramente dedicada a Luis Sepúlveda, bem como a exibição do documentário Dez/Vinte Correntes de João Cayatte.
A primeira de mais de uma dezena de sessões online foi com Alberto Manguel, com quem Ana Daniela Soares desenvolveu o tema A memória tem tendência para a ficção". Segundo Manguel, "a memória é uma construção que se torna realidade" e "o vocabulário que a vida nos dá serve para escrever os livros". Vai mais longe: "Há algo no sofrimento que ajuda a criar histórias e boa literatura!" Considera que não é precisa uma memória exata, pois Flaubert não conheceu Bovary mas encontrou na sua vida referências para a criar, tal como Camões não viajou com Vasco da Gama mas foi capaz de reproduzir o que ele fez."
Antes da última mesa, sob uma outra frase de Sepúlveda, Seria insuportável ser imortal , Maria Flor Pedroso conversou com Fernanda Torres, Juan Gabriel Vásquez e Onésimo Teotónio Almeida. Torres concorda com o que escreveu Sepúlveda: "Foi isso que a covid veio provar devido à falta de sentido da vida atualmente". Vásquez tem a certeza de que para Sepúlveda "a literatura era um lugar de amizade e à qual não dava uma solenidade exagerada". Quanto a Onésimo, tem a certeza de que Sepúlveda "não quereria ser imortal" mas lamenta que "nos tenha deixado tão cedo."
Entre outros, passaram pela 22ª edição online Ana Luísa Amaral, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares, Rui Zink, Afonso Cruz, Filipa Leal e Valter Hugo Mãe.