Luís Miguel Cintra, onde vida e teatro se confundem
"O teatro é uma maneira de perceber as coisas e de viver." Estas são palavras de Luís Miguel Cintra, ditas numa entrevista ao DN no ano passado e que resumem bem o pensamento do ator e encenador, fundador do Teatro da Cornucópia: o teatro como espaço privilegiado para nos pensarmos, a nós e ao mundo. E isto é válido para quem o faz e para quem o vê.
Foi assim desde o primeiro dia - aquele 13 de outubro de 1973 em que se estreou, no Teatro Laura Alves, O Misantropo, de Molière - e será assim para além do dia de hoje, quando acontece a última apresentação pública do Teatro da Cornucópia. Pelo meio ficam 126 criações que passam por Marivaux, Brecht, Gorki, Kroetz, Horváth, Buchner, Plauto, Dario Fo, Shakespeare, Gil Vicente, Beckett e muito mais. Tragédias, comédias, dramas, farsas.
No centro desta atividade está Luís Miguel Cintra, nascido em Madrid a 29 de abril de 1949, filho do filólogo e linguista Luís Lindley Cintra. Estava na Faculdade Letras de Lisboa quando começou a fazer teatro, com Jorge Silva Melo e outros colegas. Em 1969 estrearam O Anfitrião, de António José da Silva. Foi dessa aventura universitária que haveria de surgir depois A Cornucópia - com Glicínia Quartin, Dalila Rocha, Raquel Maria, Filipe La Féria, Luís Lima Barreto e outros cúmplices.
Desde o início, a determinação em apresentar "textos clássicos universais", ou seja, em afirmar a primazia do texto e do pensamento como ponto de partida da criação. Mas com a certeza que no ponto de chegada haveria de estar um trabalho esteticamente irrepreensível, com grandes interpretações e grande beleza. Em 1979, Jorge Silva Melo deixa a companhia. Mais tarde, Cristina Reis ocupará a codireção com Cintra, num reconhecimento do papel central que a cenografia e o pensamento estético sempre tiveram na Cornucópia.
Também desde o início essa mania de que o teatro e a vida se confundem. De que para estar ali, naquele grupo, tem de se estar inteiro. É por isso que todos os que por ali passaram falam de uma família ou de uma casa. Por ali passaram atores como Lia Gama, Maria Emília Correia, Isabel de Castro, José Pedro Gomes, Márcia Breia, por exemplo. Mais tarde Diogo Dória, José Manuel Mendes, Manuela de Freitas, José Wallenstein, Luísa Cruz, Monica Calle, António Fonseca, Adriano Luz, Miguel Guilherme, Rita Blanco. É impossível enumerá-los todos. José Airosa, Rita Durão, Beatriz Batarda, Miguel Borges, Rita Loureiro, Ricardo Aibéo, Sofia Marques, Nuno Lopes.
Sem fazer cedências às modas, sem abdicar do seu estilo de fazer teatro e dos textos ditos quase na íntegra, mesmo que isso implicasse espetáculos de mais de três horas, sobrevivendo às críticas e às crises, a Cornucópia conseguiu, nos últimos 20 anos, finalmente, uma quase unanimidade à sua volta. Cintra recebeu uma série de prémios: o Garrett (1991), o da Casa da Imprensa e o Globo de Ouro para figura do teatro (1999), o Almada (2000), o Pessoa (2005). Em 2014 o Festival de Teatro de Almada homenageou-o.
Luís Miguel Cintra retirou-se dos palcos, no ano passado, vencido pela doença de Parkinson, pelas falhas no corpo e na memória. No dia dessa despedida, avisou o seu público: "Não vemos como, na atual conjuntura, [a Cornucópia] possa ter capacidade de ultrapassar as dificuldades económicas que tem. Não sabemos quanto durará." Agora já sabemos.