Dia 31 de dezembro de 2019 será o último em que aquele perfume dilatará as narinas de quem sobe e desce o Chiado. As prateleiras quase vazias e a pressa na voz de um dos donos, sem tempo nem paciência para mais entrevistas, dão por findos os 81 anos a vender cafés da Casa Pereira: "Fechamos às 19 de 31 de dezembro, sim.".Não foi, porém, como costuma ser, o preço do arrendamento a ditar o fecho; a loja era dos proprietários desde 1995. Ninguém "despejou" a Casa Pereira, os seus cafés e balões de vidro. Quiseram vender, decerto por bom preço - o metro quadrado no Chiado queima - e largar o negócio. Coisas que acontecem e sempre aconteceram, nenhum drama especial nisso não se desse o caso de as lojas históricas, como esta, terem desaparecido, nos últimos dez anos, e sobretudo nos mais recentes cinco, a uma velocidade muito pouco natural..Tal a velocidade de resto que se quisermos recordar o que desapareceu teremos dificuldades. Só no Chiado, e na Rua Garrett, aquela onde a Casa Pereira ocupa até esta terça-feira o número 38, perdeu-se, já após a destruição causada pelo incêndio de 1988, uma boa mão-cheia de ex libris - "lojas com história", como o nome do programa da autarquia que classifica e protege comércios, tendo até dezembro de 2018 classificado 144 (a Pereira era uma delas), mas para as quais, iniciado apenas em 2015 e com efeitos a partir de meados de 2016, não chegou a tempo..Uma das primeiras mais históricas a desaparecer no Chiado foi a David & David, uma loja de tecidos ao lado da Brasileira, cujo belíssimo décor de madeira escura se manteve em parte nas várias utilizações que o espaço já teve. A mesma sorte não tiveram os armazéns Ramiro Leão, engolidos, no início deste século, por uma flag store Benetton, e dos quais resta apenas o elevador arte nova, a cuja manutenção a marca foi obrigada, mas que ninguém vê no meio da banalíssima, metalizada e "moderna" arquitetura da loja..Lojas de tecidos, aliás, foram uma hecatombe. Ainda na rua Garrett, da que foi considerada a mais requintada da capital, a Casa Souza, os balcões de madeira e lustres imensos eclipsaram-se, também já neste século, para dar lugar a uma loja Boss igual a todas as lojas Boss do mundo, em Lisboa como em Hong Kong ou Singapura; mesmo destino teve a Tatá & Rodrigues, do lado ímpar da rua, ainda nos anos 1990. Na Baixa propriamente dita, a maioria desses comércios não chegou à década que agora acaba..E este ano, no Verão, findou-se a octogenária Casa Frazão (na foto no topo desta página), na Rua Augusta, ao lado do outro café A Brasileira. Os sócios, funcionários a quem o dono ao morrer deixou a loja, fizeram contas ao que vendiam e à oferta de indemnização feita pelo dono do imóvel e decidiram atirar a toalha. "Ainda pensámos ir para outro lado, mas as rendas são insustentáveis", comentou uma das sócias à Lusa..Da enfiada de lojas de tecidos no mesmo quarteirão da Frazão, também o da antiga Loja das Meias - essa, durante décadas reputada como a mais chique loja da Baixa, finou-se em 2007, para dar lugar a outra Benetton -, e que incluía as Galerias Rivoli, só resta a Londres Salão, já única sobrevivente na Baixa-Chiado de um tipo de comércio, o dos tecidos "finos", que até aos anos 1980 imperava na zona.."Mais torresmos e menos aldrabices gourmet".Normal, dir-se-á: se cada vez menos pessoas "mandam fazer" roupa, é natural que as lojas de tecidos se tenham extinguido. O mesmo se poderá dizer das lojas de cafés, sobretudo após o advento das máquinas Nespresso. Mesmo se há as que resistem. Caso da Pereira da Conceição, no número 102 da Rua Augusta, que continua em jogo. Nuno Figueiredo, o supervisor, garante: "A casa vai-se manter e vai-se manter por muito tempo. Temos os velhos clientes e temos os novos, sobretudo turistas. Mudámos algumas coisas, porque se fossemos só vender chás e cafés não nos aguentávamos.".Mudou os horários de funcionamento, diversificou a oferta (vende porcelanas, além de café, chá, utensílios a eles ligados, como balões, e bombons) e faz-se valer da beleza do espaço, viagem direta aos anos 1930 (abriu em 1933 e os donos foram tendo o discernimento de não estragar)..Outros, menos avisados, foram destruindo o património. Caso da Casa Cid, taberna nas traseiras do Mercado da Ribeira que com mais de cem anos não logrou integrar-se nas lojas com história, por ter sido considerada "muito descaracterizada". O mesmo aconteceu à também ao restaurante/ tasca Das Flores, na rua das Flores..O programa, que permite impor aos proprietários dos imóveis um limite ao valor das rendas, e tem nos objetivos "preservar e salvaguardar os estabelecimentos e o seu património material, histórico e cultural", assim como "dinamizar e reativar a atividade comercial", terá como critérios sobretudo o aspeto estético, o que excluiu ambas as casas. O edifício da Casa Cid foi comprado para fazer - adivinhe-se - um hotel, e o dono, Borja Cid, bisneto do galego que abriu a casa, já sabe que terá de sair no início de 2020, depois de cerca de três anos à frente de um negócio que veio assumir vindo de Madrid, onde também trabalhava na restauração..A petição lançada para salvar a taberna, clamando por "mais torresmos e menos aldrabices gourmet" não logrou o seu intento. O património culinário de "carapauzinhos, feijoada, postas de bacalhau à maneira, dobrada, pescada cozida, cozidos valentes, caldeiradas e pataniscas" não entrou ainda nos critérios históricos das classificações. E se algum dia entrar talvez já não haja nada para salvar - que o digam as dezenas de velhas mercearias que foram sendo despejadas na zona central de Lisboa, quando os prédios começaram a ser comprados por atacado..Uma das primeiras a ter esse destino foi a Nova Açoreana, na Rua da Prata, logo em 2011, ainda a capital não sonhava com o tsunami turístico e imobiliário que havia de a assolar a partir de 2014 - e que fez explodir o número de alojamentos locais de 61 em 2010 para 7006 em 2018, num desvairado aumento de 11.485 por cento..A Nova Açoreana tinha mais de 100 anos ali na esquina da Rua de São Nicolau, e chegou a fornecer, no relato da ex funcionária Maria Helena Catarino Duarte, que só teve aquele emprego e acumulou quase 52 anos de trabalho à "caixa", hotéis de luxo como o Eduardo VII e o Avenida Palace. Reabilitada em 2001 pela nova gerente, Cristina Maneira, que nunca trabalhara no ramo, é hoje a receção de um hotel sem história..Talvez o que irá acontecer com a mercearia de Maria - chamemos-lhe assim - no fim de uma história de terror. Maria tem 60 anos e trabalha naquela loja, no centro de Lisboa, desde os 25, quando o pai teve um AVC e a mãe ficou em casa a cuidar dele. O contrato da casa tem 50 anos, mas em 2013 recebeu uma carta registada do senhorio, no âmbito das alterações na lei do arrendamento efetuadas pelo governo de Passos Coelho, estipulando um aumento na renda, que terá ficado ainda assim abaixo dos cem euros, e a passagem do contrato para o prazo de cinco anos. Maria não discutiu nem procurou, na altura, apoio jurídico. "Achei que era a lei e não havia hipótese.".Os cinco anos completaram-se em 2018 e o senhorio pediu-lhe para sair. Desta vez Maria recorreu a um advogado e, com base no facto de se tratar de uma micro-empresa, este escreveu uma carta ao proprietário a negociar uma extensão do prazo. Este acedeu, mas só em mais um ano - que terminou recentemente..De acordo com a informação que lhe foi dada pelo advogado, Maria teria de receber, findo o contrato, uma carta a notificá-la e a dar-lhe um prazo para sair, mas tal não sucedeu. O que sucedeu foi que pouco depois de informar o proprietário de que teria de vender as máquinas e os produtos antes de abandonar o local, a loja foi assaltada..Nunca pensei que uma coisa destas fosse possível"."Levaram whiskys, vinho do Porto, comeram coisas, estragaram, deixaram tudo virado do avesso" conta ao DN. A loja, garante, nunca tinha sido assaltada antes, e quem entrou fê-lo pelas traseiras, que dão para quintais e fazem parte da propriedade do senhorio. "Tinha grades de ferro a proteger, uma parede, e partiram aquilo tudo.".Mas uma coisa assim não faz muito barulho? "Tudo aqui à volta está devoluto. Só há um senhor de 80 anos a viver no primeiro andar, e a casa dele também foi assaltada com ele lá dentro." Como assim? "Desligaram a água e a luz, arrancaram canos, fizeram buracos no chão. E ele sentou-se na cama - eram umas três da manhã - a ouvir aquilo à espera que chegassem ao quarto. Mas não foram lá.".Maria estranha que o homem não tivesse chamado a polícia - ela chamou, assim como a companhia de seguros. Mas quando passado pouco tempo a loja voltou a ser assaltada não se deu a esse trabalho. "Porque só levaram duas garrafas de champanhe e uma grade de cervejas, achei que não valia a pena a maçada." Não houve duas sem três, porém. Os ladrões voltaram e desta vez levaram praticamente tudo, incluindo arroz, açúcar, bolachas, sumos da Compal, azeite, tudo o que estava nos frigoríficos e até a máquina de cortar fiambre.."Não posso acusar ninguém mas é uma coincidência muito grande. Tinha dito ao proprietário que precisava de vender as máquinas para realizar capital para pagar aos fornecedores e zás, roubam uma das máquinas. E era do que mais vendia, o fiambre. Não tenho vontade para nada, estou psicologicamente muito afetada. Nunca pensei que uma coisa destas fosse possível.".Suspira, a voz mais fraca: "Estou a tentar vender as máquinas o mais depressa possível para sair. E depois a ver se consigo arranjar alguma coisa para fazer. Ainda procurei um espaço aqui na zona, mas é impossível. Tenho margens de lucro muito pequenas, de 10%, 20%, e as rendas são impossíveis: 1500, 2000 euros. A última loja de que soube foi arrendada por 3000 e tal euros.".Há lojas com história, e histórias com lojas - nem todas bonitas e morais. Algumas são mesmo de bandidos.