Lobo do Mar. O vigilante que teme por quem cair ao Douro

Há mais de duas décadas que, a bordo do<em> Lobo do Mar</em>, Gastão Teixeira resgata, a título voluntário, quem cai ou se atira ao rio Douro
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Uns chamam-lhe o barco dos afogados, outros o dos salvamentos. Na madeira, a letras brancas sobre tinta azul, lê-se apenas Lobo do Mar. No início, servia para a pesca, mas o tempo mudou-lhe a função. É a bordo dele que Gastão Teixeira, de 65 anos, resgata quem cai ou quem se atira ao Douro. Há já 23 anos que assim é - sempre a título voluntário. Gastão é quem lá está, de vigia, antes de a Polícia Marítima ou de os Sapadores chegarem. É quem salta para o barco antes que o corpo se afunde.

Ainda era jovem quando salvou alguém pela primeira vez. Foi o suficiente - "Vi que tinha de fazer aquilo, o meu coração puxou-me. E, até hoje, a minha vida é esta." Não faz ideia de quantos corpos já tirou da água. O único número que conhece é o de 2013, ano em que resgatou 19 pessoas, apenas quatro delas com vida.

De pele queimada do sol e bigode grisalho, boné do FC Porto e colete da Proteção Civil - oferecido como agradecimento pelo trabalho de voluntariado -, na Ribeira, não há quem não o conheça. Foi junto àquela margem que nasceu e cresceu, na Rua dos Canastreiros, e agora, reformado, é lá que passa os seus dias. Chega ao cais às nove da manhã e só volta a casa, na Madalena, na outra margem do rio, às sete da noite. Só não o faz ao domingo, porque tem de "dar um bocadinho à família".

Mas, no último mês, Gastão esteve apenas em terra, à deriva, a encaminhar os turistas perdidos - o Lobo do Mar deixou de navegar. "Foi o meu motor que me avariou", explica, com a voz a tremer-lhe. 3800 euros é o custo da reparação - uma dívida que não consegue suportar. Tem medo de ter de desistir do que faz e sente-se impotente, confessa, já com os olhos a marejar. Fica a olhar o rio, a ponte, com medo que o pior aconteça: "Eu é que sinto. São pancadas que estou a levar aqui. É uma vida inteira a tentar chegar a tempo. Quando não chego a tempo, ponho-me no barco a chorar sozinho. Imagine agora, que nem posso sair de terra."

Não quer estar a pedir nada a ninguém - "Não tenho coragem para isso." Mas não esconde o que pensa: que esta deveria ser uma ajuda vinda da Câmara Municipal do Porto, que, em 2016, o distinguiu com uma medalha de mérito grau ouro. O DN tentou contactar a câmara, mas não obteve resposta às perguntas que fez. Depois de semanas de silêncio da instituição, que chegou a ser contactada pelo mecânico, familiares e amigos iniciaram uma angariação de fundos no Facebook e fora dele. E, há um par de dias, já depois de o DN ter conhecido a situação de Gastão, chegou uma boa-nova: a empresa de cruzeiros Tomaz do Douro emprestou um pequeno motor ao célebre vigilante da Ribeira, até este conseguir os fundos para reparar o seu. É certo que é uma máquina menos potente, é certo que não faz o barco andar tão depressa, mas já dá para devolver o Lobo do Mar ao sítio a que pertence.

"Eu não me quero reformar do rio", diz, com certezas. E também as têm a gente da Ribeira. Quase todos os mestres dos barcos do Douro têm o número de Gastão e é a ele que ligam quando aparece alguém a boiar. É também o nome dele que os locais gritam quando alguém cai, acidentalmente, ao Douro. O que, com os turistas, é algo regular. No início deste mês, mesmo sem barco, ajudou a resgatar um casal que escorregou, ao tentar aproximar o cão da água numa das plataformas de acesso ao rio.

Mas esses são pequenos sustos. "Passei coisas aqui no rio que só eu é que sei", conta. "Tinha uns 18 ou 19 anos quando vi uma pessoa a atirar-se da ponte de baixo. Peguei num barquito, uma gamela, do lado de Gaia, e fui apanhar o corpo em frente ao Cálem. Parti uma tábua desse barco e dessa tábua fiz remo. E levei o corpo para terra, com a água a entrar." Admite que nem toda a gente tenha coragem para o mesmo. Ele só a ganhou com os anos e porque, revela, teve um bom professor - o Duque da Ribeira, Diocleciano Monteiro, famoso por ensinar os meninos da Ribeira a nadar e por resgatar os corpos dos suicidas da Ponte Luís I das profundezas do rio Douro, num processo chamado "gratear". "Ele foi um homem que... Como o Gastão não aparece aqui nenhum. Era bom que aparecesse, metade do que ele foi, até. Ele perguntava às pessoas onde é que uma pessoa tinha caído e, com as medidas dele, sabia onde ia aparecer. Mais metro menos metro, o corpo estava ali", recorda. Em jovem, Gastão chegou mesmo a ajudá-lo com alguns resgates. Recorda-se de um vizinho que, há quase 40 anos, morreu afogado na Madalena. Os bombeiros foram para lá e não davam com o corpo. Foram Gastão e Duque que, com a ajuda de fateixas, o resgataram.

Muito aprendeu com a personagem mítica da Ribeira, mas muito também aprendeu apenas a observar. Hoje, está sempre atento a sinais suspeitos, como "quando alguém está na ponte, sozinho, a andar de um lado para o outro". Quando o vê, liga logo para a polícia. Mas nem sempre chegam a tempo e Gastão já viu muitas pessoas a saltar. Quando pega no barco, já sabe que é pouco provável que as tire da água com vida - "Mas a minha preocupação é o corpo não ir para o fundo, porque eu já sei como é quando o corpo está sete dias ou um mês lá - sei como fica", explica.

"Fazia da Ribeira a minha casa, tal como faço hoje"

O "vício do rio", como Gastão lhe chama, herdou-o do pai, que, apesar de sapateiro de profissão, decidiu comprar um barco para se entreter na pesca e passear - tinha Gastão 7 anos. Foi mais ou menos por essa altura que aprendeu a nadar, "com a barriga apoiada na pedra de uma das linguetas do rio", na Ribeira. E teve de provar que sabia quando o pai o obrigou a atravessar o rio, num tempo em que o cais de Gaia era só areia. Foi e voltou. Após o regresso, o pai meteu-o no barco e disse-lhe "desenrasca-te". Não tardou muito até não querer sair mais de lá. Aliás, o barco, batizado como S. Miguel, era mais conhecido por aquelas bandas como o barco pirata, porque Gastão, à revelia da família, faltava à escola e ia passear com os amigos. Foi o único dos 16 irmãos que ganhou amor ao S. Miguel. Era nele, recorda, que ia pescar robalos com o pai, no meio do nevoeiro.

Apesar disso, nunca fez do rio ofício. Foi trolha, carpinteiro, sapateiro, fez a tropa e acabou a trabalhar na Cerâmica de Valadares durante 31 anos. Já era oleiro - e trabalhava por turnos - quando quis comprar um barco para se entreter na pesca, o Pedra da Eira, assim batizado em referência a uma pedra da Madalena em que Gastão gostava de pescar. Não ficou feliz com a compra e, um ano depois, encontrou o Lobo do Mar - que, antes de chegar às mãos de Gastão, era verde e não das cores do clube do coração. O amor ao rio voltou a falar mais alto: quando trabalhava de manhã, ia para a Ribeira de tarde, quando trabalhava de tarde, ia para a Ribeira de manhã. "Fazia da Ribeira a minha casa, tal como faço hoje. Só ia para casa à noite."

Foi lá que viu o Porto a mudar. Lembra-se das mercearias, das padarias, dos talhos, das hortaliceiras, das azeitoneiras pela margem fora. "Agora, que a cidade mudou para o turismo, é só restaurantes", comenta.

Na estação quente, o foco das preocupações de Gastão está nas distrações dos turistas e nos célebres "postais" do Porto - os miúdos que, só de calções, saltam do tabuleiro inferior para mergulharem nas águas do Douro. O que nem sempre corre bem. Os amigos que tem na Ribeira reclamam com ele - dizem-lhe que ele não presta atenção, que está sempre de olhos colados ora na ponte ora no rio. A resposta, essa, já a traz na ponta da língua: "Estou-te a ouvir. Só que o meu radar tem de estar a trabalhar." Já salvou gatos, pombas, pequenos pássaros que, ao fugirem das gaivotas, caem à água. "Tudo o que esteja no rio e que não seja do rio, eu vou lá buscar", explica.

A missão é dura, mas vale a pena. Sem conter as lágrimas, recorda o caso de "um moço novo que se mandou da Ponte D. Infante": "Foi o milagre que tive nesta vida toda. Apanhei-o vivo. E, passado um ano, o pai veio aqui dar-me um abraço e a agradecer. As medalhas que eu tenho são essas."

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