Livros de religião são o novo filão das editoras em Portugal

Centenário das aparições de Fátima e a popularidade do Papa geraram interesse em novos leitores sobre temas da espiritualidade
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O tema religião deixou de ser tabu e o mercado literário reflete essa tendência da busca de livros sobre a espiritualidade, multiplicando-se em Portugal a edição de livros nesta temática.

Se houvesse que estabelecer uma razão a nível mundial para tanto interesse neste género de livros, poder-se-ia dizer que o choque entre as conceções religiosas do Ocidente e do Oriente, designadamente a crise provocada pela invocação do Alcorão como elemento justificativo do terrorismo. A esta situação, juntam-se dois momentos historicamente inovadores no que toca ao Vaticano: a resignação inesperada de Bento XVI, situação nunca vista em seis séculos, e a eleição de um papa que vem do continente sul-americano.

O à-vontade de Francisco na relação com o mundo gerou uma popularidade raramente vista nos responsáveis máximos do Vaticano, o que provocou uma ansiedade editorial nas duas partes: a publicação do que o Papa diz e as biografias sobre o homem que lidera os católicos. Por isso, jamais um Papa teve em tão pouco tempo tantos volumes de sua autoria, biografias de todo o género sobre o seu passado e presente, análise do pensamento e investigações de todo o género. Ou seja, a religião - tanto a católica como a muçulmana estão na moda -, mesmo que a primeira produza livros de promoção espiritual e a segunda se explique.

A presença simpática do papa desencadeou nas editoras portuguesas a publicação de um número nunca visto de livros em torno do tema Francisco. Que, acrescido à aproximação do centenário das aparições de Fátima, faz prever um elevado número de dezenas de novas edições a juntar à mais de uma vintena já publicada este ano sobre temas religiosos variados.

Haverá outras razões para esta chuva de livros religiosos em Portugal? Decerto que sim, tal como a realidade social que é exibida nos jornais, televisão e cinema. Neste último caso, depois do filme que Hollywood fez sobre Fátima na década de 50 do século passado, o assunto estava esquecido. No entanto, nas últimas semanas foi noticiada a realização de duas longas- -metragens com um único foco: Fátima. A própria conversão não era objeto de revelação pública e longe estão os dias em que a pouco religiosa Maria Barroso assumiu publicamente a devoção cristã, sendo que esta semana o arquiteto Álvaro Siza o fez também e com estrondo. Tal como os colunistas que representam a Igreja terem mais espaço nas edições semanais, pois distante vai o tempo em que os teólogos Anselmo Borges e frei Bento Domingues eram as únicas vozes. Até as reportagens sobre Fátima eram ignoradas na imprensa de referência, situação que se alterou com a publicação de várias nestes dias que antecedem o 13 de maio.

Há duas semanas, Tomás Halík, um dos principais teólogos europeus cristãos, reuniu na Culturgest um milhar de pessoas para falar de Deus e lançar o seu recente ensaio, Quero Que tu Sejas!, o quarto volume de sua autoria que as Paulinas Edições publicaram desde 2013.

O primeiro romance

A nível editorial, essa moda religiosa também se verifica fortemente. Tema sobre o qual os editores portugueses não pretendem falar, justificando que é apenas mais um segmento editorial. Na realidade, não é de agora que a religião vende livros mas nota-se, dizem, um interesse acrescido. O primeiro autor que, inesperadamente, publicou um romance sobre Fátima foi José Luís Peixoto. Em Teu Ventre, que foi lançado em outubro no próprio local das aparições, e que trata de "uma narrativa que cruza a rigorosa dimensão histórica com a riqueza de personagens surpreendentes", a par de "uma reflexão acerca de Portugal e de alguns dos seus traços mais subtis e profundos", em que "a questão da maternidade é apresentada em múltiplas dimensões, nomeadamente na constatação da importância única que estas ocupam na vida dos filhos".

Outro autor que surpreendeu ao fazer do tema de Fátima o cenário para o seu novo romance foi Manuel Arouca, que em Jacinta - A Profecia conta a "história de uma criança guiada pela fé". Bastante distante de livros que o tornaram sucesso, como Filhos da Costa do Sol, Arouca escolhe uma personagem obscurecida pela morte muito jovem e pelo peso de Lúcia: Jacinta. A intenção é fazer uma biografia da menina que deu a conhecer à população da região de Ourém o segredo sobre a aparição da Nossa Senhora, que os três tinham prometido manter em segredo.

Tanto Peixoto como Arouca mantêm uma intimidade perante o grande milagre nacional, que procura cruzar-se com uma tentativa de seduzir o mais profundo dos sentimentos de crença dos leitores. Ambos reverenciam o facto que durante quase cem anos tem vindo a dividir os portugueses no que toca à real existência de ter existido um milagre em Fátima a 13 de outubro de 1917, o Milagre do Sol.

Esta é uma área onde, por estranho que pareça, a investigação científica pouco produz. Nada que não vá ser alterado nos próximos meses, como é o caso de um primeiro título, N. Sra. De Fátima - História das Aparições, que conta com um prefácio de D. José Saraiva Martins. No entanto, se o leitor espera por uma investigação imparcial pode perder a esperança face à primeira frase do autor: "Eu sou um estudioso da história. Investigo, leio, analiso e escrevo. Mas Fátima não é reportagem nem história. É milagre."

O autor contestatário

Se o trabalho anterior é fruto da devoção, há uma voz que há décadas está em constante negação do milagre, o padre Mário de Oliveira, que publicou recentemente um volume intitulado 14 Cartas ao Papa e a meio do ano passado o polémico Fátima, $.A., ambos em segunda edição. No primeiro caso, é a impressão de cartas escritas ao papa Francisco e "que nunca tiveram qualquer resposta". Não é fácil nas suas acusações, em resposta direta a certas afirmações do Sumo Pontífice sobre o efeito da economia na sociedade: "Vejo com maior nitidez que o cristianismo é o pai do poder, hoje só quase financeiro à escala planetária." Já em Fátima $.A. o assunto das 300 páginas é o território das aparições e o estabelecimento de um santuário que perpetua o que considera ser uma mentira desde o seu anúncio em 1917. Neste volume faz a crítica à Documentação Crítica de Fátima, ao Processo Paroquial de Fátima, ao Relatório da Comissão Canónica, bem como uma leitura interpretativa das Memórias de Lúcia.

O recordista Jesus

Se Jesus Cristo tem vindo a ter várias biografias lançadas recentemente em Portugal, até um livro em que os autores exploram o registo detectivesco para revelar mais pormenores da Sua vida, ou títulos como A Vida Oculta e No Banco dos Réus, esta é uma área onde também surge o trabalho sério do padre José Tolentino de Mendonça, A Construção de Jesus - A Surpresa de um Relato.

Mas é o Papa Francisco o recordista atual deste segmento dedicado à religião - Jesus é a personalidade mais biografada mundialmente. Entre estes títulos papais pode destacar-se O Nome de Deus É Misericórdia, onde dá a primeira entrevista; Todos os Dias com Francisco, considerado o "mais completo retrato do Papa Francisco", ou A Revolução da Misericórdia e do Amor, do cardeal Walter Kasper, em que "anuncia a mensagem perenemente válida do Evangelho".

Teologia nacional

Os teólogos portugueses não fogem ao tema específico do Papa e no final do ano passado o P. Carreira das Neves lançou O Rosto e as Imagens, que é "uma viagem pelas origens e pelo futuro do Cristianismo" de modo a "compreender o apelo evangélico do papa". Mais recentemente, frei Bento Domingues teve os seus textos reunidos para o volume intitulado Francisco - O Papa Que Põe a Igreja a Mexer. Na apresentação está logo o aviso de que o autor escreveu duas crónicas com o título "Eu já não acredito no Papa Francisco", explicando-se que o Papa não é o centro da sua fé mas Jesus Cristo.

Entre outras edições de carácter religioso, está também a construção de biografias de figuras da Igreja nacional. É o caso de D. Albino Cleto - Memórias de Uma Vida Plena, em que José António Santos descreve o percurso do bispo da diocese de Coimbra.

A antecipar o centenário das aparições de Fátima, o destaque vai para uma biografia em língua portuguesa: Maria. Uma investigação do jornalista brasileiro Rodrigo Alvarez, que em entrevista ao DN (ler à direita) explica o interesse na mulher mais importante da história e raramente biografada.

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