No Largo do Menino Deus, paredes-meias com o Castelo de São Jorge, levanta-se a imponente fachada da igreja com o mesmo nome, mandada construir no início do século XVIII por D. João V para cumprir um voto pelo nascimento do herdeiro. Monumento nacional há mais de cem anos, é um legado deixado à história - aquela que conta os feitos dos reis, que leva o nome de arquitetos famosos, que mostra a obra feita para a posteridade. Mas na escadaria da igreja, debaixo dos pés de quem passa, quase impercetível ao olhar, esconde-se outra história, sem éditos reais nem protagonistas famosos - a da vida quotidiana da cidade e das marcas que nela deixaram muitas gerações de lisboetas anónimos..É preciso saber que está ali e fixar o olhar na pedra para descortinar as linhas quadriculadas que definem o alquerque de doze, um jogo que ao longo de séculos foi jogado nas ruas não só da capital, mas de todo o país. Dos cerca de 50 exemplares de jogos lúdicos até agora descobertos em Lisboa, inscritos na pedra em locais tão diferentes como a Sé, o Cais das Colunas ou o Jardim das Necessidades, a maioria é precisamente este alquerque de doze, o que deixa antever que seria um dos jogos mais populares a ocupar as horas vagas dos lisboetas.."O caso de Lisboa é muito interessante porque reúne um conjunto enormíssimo de tabuleiros de jogo, o que nos leva a concluir que era uma prática comum", conta ao DN Lídia Fernandes, arqueóloga que há anos se dedica a identificar vestígios de jogos por todo o país, e na capital em particular. "Em termos de cronologia há tabuleiros de jogo reconhecidos em Lisboa pelo menos desde a época tardo-romana até inícios do século XX", acrescenta a também coordenadora do Teatro Romano de Lisboa. Na maior parte dos casos, a prática do jogo é comprovada pela descoberta das peças - por vezes "às centenas" -, muitas vezes reaproveitadas a partir de telhas, de loiças, de objetos inutilizados. Os tabuleiros propriamente ditos são muito mais raros, dado que seriam feitos sobretudo em materiais perecíveis, como a madeira. A exceção são estes modelos esculpidos na pedra..Aquele que será o exemplar mais antigo identificado até hoje não está em Lisboa, mas no Templo Romano de Évora, com a particularidade de que o jogo está traçado numa peça virada para o exterior e na horizontal. A aparente incongruência tem uma explicação: o jogo terá sido esculpido na pedra antes da sua colocação no templo, coisa que não incomodou quem o fez porque, ao contrário da pedra nua que se vê hoje, a construção original era revestida com uma espécie de argamassa. "A conclusão que tiro é que foi gravado pelos trabalhadores, pelos escravos que construíram o templo e que não tiveram problemas em deixar aquela face para fora porque não iria ficar visível. Só ficou quando a argamassa caiu", explica Lídia Fernandes..Chegar à história das atividades lúdicas é uma tarefa ingrata, logo a começar pela datação destas incisões. Veja-se o caso dos jogos desenhados na escadaria do Menino Deus - além do alquerque de 12, também há um alquerque de nove, um jogo muito semelhante ao três em linha, ainda hoje muito popular. A igreja começou a ser construída em 1711, pelo que o jogo nas escadarias é posterior a essa data..É sempre uma "datação dedutiva". Por exemplo, o claustro da Sé de Lisboa (onde Lídia Fernandes identificou dois tabuleiros) data do século XIV, e no "local onde os tabuleiros estão gravados - com um traço muito incisivo, marcado a régua - há umas concavidades quadradas que interrompem essas linhas", pelo que "são posteriores". "O que fiz foi analisar campanhas de obras do claustro. Há uma muito grande em finais do século XIV, inícios do século XV. A data que apresento para estes tabuleiros é entre princípios e finais do século XIV, inícios do XV. Infelizmente, os tabuleiros não vêm com uma legenda, e é por estas deduções que conseguimos ir afunilando algumas cronologias", conta Lídia Fernandes..Mas há uma data que a arqueóloga consegue apontar com precisão: os anos 50 do século XX, quando há um quase total desaparecimento dos tabuleiros de jogo do espaço público. "É muito clara a ideia de que a partir dos anos 50 deixa de se jogar na rua. E em casa, provavelmente." A explicação é simples: "A televisão tirou totalmente o protagonismo ao jogo.".Não há dúvidas de que jogar era uma prática habitual na Lisboa do século XVIII, XIX, inícios do século XX. "A maior quantidade de tabuleiros de jogo que temos é dessa época. Nessa altura, a prática de jogar na rua acompanha a noção de público que se começa a criar por toda a Europa. Há uma nítida separação entre o espaço público e o espaço privado. E o jogo, embora pudesse ser de usufruto privado, passa também a ser uma prática comum no campo público. A rua passa a ter novas funções, que têm a ver com a alteração da própria cidade, com o nascimento dos cafés, das tabernas, salões de jogos. O jogo passa a ser uma prática comum na sociedade lisboeta." Na cidade, além dos já referidos, estão identificados tabuleiros de jogo no Castelo de São Jorge, no Pátio Dom Fradique, na Igreja de Nossa Senhora de Jesus ou na Igreja de Santo Estêvão, entre outros..Se o jogo era comum no mundo romano e foi largamente disseminado no império pelos exércitos, o cristianismo "veio criticar e condenar os jogos de azar, que eram feitos com lançamento de dados e que passaram a ser proibidos". Mas esta condenação não se estendeu aos jogos de estratégia, que continuaram a ser jogados na época medieval - há, aliás, um livro de Afonso X, rei de Leão e Castela, de 1283, integralmente dedicado aos jogos. A partir do século XVIII, este uso está profusamente documentado. "Desde os mais pobres aos mais ricos, toda a gente jogava. Por exemplo, os azulejos que ornamentam as casas senhoriais têm muitas vezes a representação dos nobres a jogar às cartas, ao gamão, que era um jogo muito elitista, a jogar xadrez, a jogar damas.".Nas ruas jogava-se os já referidos alquerque de nove, alquerque de 12 e o que parece ser uma derivação nacional destes jogos, o alquerque de 16 (que é o alquerque de 12, mas com o acrescento de dois triângulos laterais, que é o caso do jogo das escadarias do Menino Deus). "Lisboa tem uma grande particularidade, que não está identificada em muitos outros locais, a nível mundial - o alquerque dos 16, que é uma derivação do alquerque dos 12 e que existe em grande profusão" na capital..Este tipo de jogo - também designado por dama dos 21 - foi igualmente identificado na Madeira. E também na Índia, nas Seicheles e na ilha Maurícia. "Pode ter sido uma importação de Portugal quando atingimos a Índia", diz Lídia Fernandes. "Esta origem ainda não está muito estudada, existem várias correntes de investigação. Mas nós não somos um mundo global apenas agora, somos um mundo global há muito tempo, e os portugueses contribuíram muito para esta globalização das culturas, dos costumes." E, eventualmente, dos tabuleiros de jogo..O alquerque (ou alguergue) de doze (o jogo mais comum identificado em Portugal) joga-se num tabuleiro quadrado, dividido em dezasseis quadrados. As linhas paralelas e perpendiculares que os atravessam criam 25 intersecções onde se colocam as 24 peças (doze para cada jogador, em cada lado do tabuleiro). Fica, portanto, um lugar vazio no meio, e é precisamente aí que começa o jogo: quem joga primeiro ocupa essa casa, o segundo jogador põe a sua peça de onde saiu a primeira e retira aquela que foi movida anteriormente, passando sobre ela de uma casa para outra. E assim se joga sucessivamente até que um dos jogadores fique sem peças. Outra forma de jogar: um jogador tem 12 peças e o outro apenas uma, mas este é o dux, com mais regalias (pode mover-se em todas as direções enquanto o adversário só pode avançar. Ganha o dux se eliminar todas as outras peças, ou o outro jogador se conseguir bloquear a peça única..No alquerque dos 16 (que tem dois triângulos dos dois lados do quadrado central) aplicam-se as mesmas regras, mas com 16 peças..Já o alquerque dos nove é "um jogo completamente diferente, é também de progressão e estratégia, corresponde ao três em linha que todos nós sabemos jogar".