No dia 2 de dezembro de 2018, pelo segundo ano consecutivo, Donald Trump não esteve presente na cerimónia dos prémios honorários atribuídos pelo Kennedy Center, em Washington. Entre os homenageados, Cher e Lin-Manuel Miranda tinham já sido questionados sobre a ação do 45.º presidente dos EUA, ambos dando conta de uma visão profundamente negativa. No caso de Lin-Manuel Miranda, a opinião não podia ser mais telegráfica: "Demita-se.".Provavelmente, tão contundente declaração fez que o rótulo de artista "político" se colasse à figura de Lin-Manuel Miranda, ator, encenador, compositor e produtor nascido em Nova Iorque, em 1980, de ascendência porto-riquenha. Convenhamos que tal classificação simplifica de forma fácil e equívoca a conjuntura em que tudo aconteceu e, mais do que isso, as singularidades do seu labor artístico..Nessa altura e, em boa verdade, durante todo o mandato de Trump, proliferaram as clivagens entre o presidente e o mundo das artes e do espetáculo. Neste caso particular, ele passou a ser o único presidente que faltou ao evento do Kennedy Center por opção (não aceitou o convite) - acontecera antes com Jimmy Carter, George H. W. Bush e Bill Clinton, em 1979, 1989 e 1994, respetivamente, mas por força da agenda política. Mais do que isso: na altura, era já muito claro que a dimensão política do labor criativo de Lin-Manuel Miranda não se esgotava num qualquer soundbyte para uso mediático..Em 2018, convém lembrar, Lin-Manuel Miranda era já encarado como um genuíno prodígio. O seu musical Hamilton tinha-se imposto como um acontecimento transformador na dinâmica cultural made in USA. Depois da estreia no Public Theater, de Nova Iorque, a 20 de janeiro de 2015, conquistara a Broadway, vindo a acumular uma invulgar coleção de distinções, entre as quais 11 prémios Tony, incluindo melhor musical, um Grammy para melhor álbum do teatro musical e, por fim, um Pulitzer, referente a 2016, na categoria de espetáculo teatral..O reconhecimento de Hamilton no Kennedy Center envolveu mais três elementos fundamentais para a sua conceção e gestação: o encenador Thomas Kail, o diretor musical Alex Lacamoire e o coreógrafo Andy Blankenbuehler. Consagrava-se, de facto, uma matriz de espetáculo, não apenas profundamente enraizada na cultura popular dos EUA - dos palcos ao cinema -, mas também envolvendo sempre um misto de celebração exuberante e questionamento da própria identidade histórica da América. De acordo com um dos versos mais citados de Lin-Manuel Miranda, trata-se de encarar a América como "grande sinfonia inacabada"..Uma prova muito real da energia teatral de Hamilton e dos seus cruzamentos com as linguagens cinematográficas está no registo filmado do musical, com o encenador Kail a assumir as tarefas de realização. Rodado ao longo de três performances, em junho de 2016, teve o seu lançamento adiado, primeiro para não retirar público à carreira internacional do espetáculo (a estreia em Londres, no West End, ocorreu em 2017), depois por causa das restrições impostas pela pandemia. Acabou por ser estreado pela Disney +, em julho de 2020 (está atualmente disponível em Portugal, na mesma plataforma)..Nascido em data incerta (1755 ou 1757), Alexander Hamilton é uma figura emblemática entre os founding fathers (à letra: "pais fundadores") da nação americana, isto é, aqueles que assinaram a Declaração de Independência, a 4 de julho de 1776. Entre 1789 e 1795, desempenhou as funções pioneiras de secretário do Tesouro no governo de George Washington, primeiro presidente dos EUA. Seja como for, não se poderá dizer que estejamos perante uma personagem frequente nas obras, teatrais ou cinematográficas, que abordam aquele período da história dos EUA..Essa memória "incerta" terá sido uma das razões para Lin-Manuel Miranda se interessar pela personagem (assumindo mesmo a sua interpretação na primeira temporada na Broadway): na figura sedutora e enigmática de Hamilton encontramos uma perturbante duplicidade histórica que é também, naturalmente, uma fascinante matéria dramática e dramatúrgica..Hamilton foi um dos inspiradores e, mais do que isso, um agente dos valores de liberdade inerentes à fundação dos Estados Unidos da América, ao mesmo tempo que o país escravizava os afro-americanos. Numa entrevista à rádio pública americana (NPR) a propósito do lançamento de Hamilton em filme, Lin-Manuel Miranda sublinhou isso mesmo, dizendo que "o passado não para de ajustar contas connosco". Ou ainda: "Embora tenha assumido posições antiescravatura, Hamilton manteve-se no interior do sistema.".A ousadia artística de Hamilton pode medir-se através da sua pluralidade musical. Assim, se é verdade que a exuberância dos seus quadros nos remete para o riquíssimo património da Broadway e de Hollywood - envolvendo compositores da estirpe de Cole Porter ou George Gershwin, a par de cineastas como Vincente Minnelli -, não é menos verdade que Lin-Manuel Miranda se afirma como um devorador de referências, tão original quanto imaginativo, integrando "desvios" que vão da soul ao hip hop..A harmonia de tais contrastes encontra a sua expressão mais radical na própria distribuição dos papéis. Assim, o elenco de Hamilton altera (apetece dizer, como num jogo: baralha e volta a dar) as correspondências tradicionais entre atores e personagens. Exemplos? Aaron Burr Jr., o advogado e político que matou Hamilton num duelo, e Thomas Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente dos EUA, são personagens brancas interpretadas por atores negros - respetivamente, Leslie Odom Jr. e Daveed Diggs..Quer isto dizer que tudo é intermutável? E que a história não passa de um baile de máscaras? Nada é tão simples, para mais no contexto político-cultural americano, atravessado por conflitos históricos e sociais, materiais e simbólicos que, como foi notório, a presidência de Trump agravou..Lin-Manuel Miranda tem estado a enfrentar algumas insólitas convulsões de tal contexto a propósito do filme Ao Ritmo de Washington Heights, realizado por Jon M. Chu (lançado nos EUA, e também nas salas portuguesas, há pouco mais de uma semana) - trata-se de uma adaptação de In the Heights, o seu musical estreado na Broadway em 2008, centrado na comunidade dominicana de Washington Heights, em Nova Iorque. Algumas vozes têm-se manifestado contra a predominância de atores de pele clara, favorecendo aquilo que consideram uma forma de "exclusão" de afro-latinos. Em qualquer caso, Lin-Manuel Miranda veio pedir desculpa, agradecendo as críticas "honestas" e considerando que "ficámos aquém das expectativas"..Que a conjuntura emocional para lidar com estas questões não será a mais favorável, provam-no as declarações de Rita Moreno, atriz americana nascida em Porto Rico, "oscarizada" por West Side Story (1961). Assim, há cerca de uma semana, em entrevista a Stephen Colbert (The Late Show, CBS), questionada sobre a versão cinematográfica de In the Heights, afirmou que estavam a "atacar a pessoa errada". Considerou mesmo que Lin-Manuel Miranda tem sido um campeão da "latinidade", em especial dos porto-riquenhos, no interior do mundo americano do espetáculo; no dia seguinte, na sua conta do Twitter, Rita Moreno veio esclarecer que tinha menosprezado "a importância dos negros na comunidade latina"....Twittertwitter1405322955026993157.Twittertwitter1405322954062376964.Em qualquer caso, no plano da intervenção social e política, a agenda de Lin-Manuel Miranda tem estado preenchida. Assim, em 2016, na sequência de um encontro com o presidente Barack Obama, integrou um grupo de personalidades que vieram publicamente defender a renegociação da dívida de Porto Rico; um ano mais tarde, foi também um dos artistas envolvidos na angariação de fundos para auxiliar as famílias porto-riquenhas que sofreram os efeitos do furacão Maria..Entretanto, a sua presença no mundo cinematográfico poderá reforçar-se com o lançamento de Vivo, um musical de desenhos animados, produzido pela Sony, para o qual compôs as canções (já está anunciado na Netflix, embora sem data). Vale a pena lembrar que uma das suas composições para outra longa-metragem de animação, Moana (2016), dos estúdios Disney, lhe valeu uma nomeação para o Óscar de melhor canção. A sua ação no interior da tradição do musical consiste em recuperar os modelos clássicos, contribuindo para uma reinvenção dos seus parâmetros temáticos e narrativos. A esse propósito, convém referir que Lin-Manuel Miranda está também a trabalhar na banda sonora de A Pequena Sereia, agora em versão com atores, colaborando com Alan Menken, o veterano compositor da versão animada de 1989 - como se prova, a sinfonia continua por acabar..dnot@dn.pt
No dia 2 de dezembro de 2018, pelo segundo ano consecutivo, Donald Trump não esteve presente na cerimónia dos prémios honorários atribuídos pelo Kennedy Center, em Washington. Entre os homenageados, Cher e Lin-Manuel Miranda tinham já sido questionados sobre a ação do 45.º presidente dos EUA, ambos dando conta de uma visão profundamente negativa. No caso de Lin-Manuel Miranda, a opinião não podia ser mais telegráfica: "Demita-se.".Provavelmente, tão contundente declaração fez que o rótulo de artista "político" se colasse à figura de Lin-Manuel Miranda, ator, encenador, compositor e produtor nascido em Nova Iorque, em 1980, de ascendência porto-riquenha. Convenhamos que tal classificação simplifica de forma fácil e equívoca a conjuntura em que tudo aconteceu e, mais do que isso, as singularidades do seu labor artístico..Nessa altura e, em boa verdade, durante todo o mandato de Trump, proliferaram as clivagens entre o presidente e o mundo das artes e do espetáculo. Neste caso particular, ele passou a ser o único presidente que faltou ao evento do Kennedy Center por opção (não aceitou o convite) - acontecera antes com Jimmy Carter, George H. W. Bush e Bill Clinton, em 1979, 1989 e 1994, respetivamente, mas por força da agenda política. Mais do que isso: na altura, era já muito claro que a dimensão política do labor criativo de Lin-Manuel Miranda não se esgotava num qualquer soundbyte para uso mediático..Em 2018, convém lembrar, Lin-Manuel Miranda era já encarado como um genuíno prodígio. O seu musical Hamilton tinha-se imposto como um acontecimento transformador na dinâmica cultural made in USA. Depois da estreia no Public Theater, de Nova Iorque, a 20 de janeiro de 2015, conquistara a Broadway, vindo a acumular uma invulgar coleção de distinções, entre as quais 11 prémios Tony, incluindo melhor musical, um Grammy para melhor álbum do teatro musical e, por fim, um Pulitzer, referente a 2016, na categoria de espetáculo teatral..O reconhecimento de Hamilton no Kennedy Center envolveu mais três elementos fundamentais para a sua conceção e gestação: o encenador Thomas Kail, o diretor musical Alex Lacamoire e o coreógrafo Andy Blankenbuehler. Consagrava-se, de facto, uma matriz de espetáculo, não apenas profundamente enraizada na cultura popular dos EUA - dos palcos ao cinema -, mas também envolvendo sempre um misto de celebração exuberante e questionamento da própria identidade histórica da América. De acordo com um dos versos mais citados de Lin-Manuel Miranda, trata-se de encarar a América como "grande sinfonia inacabada"..Uma prova muito real da energia teatral de Hamilton e dos seus cruzamentos com as linguagens cinematográficas está no registo filmado do musical, com o encenador Kail a assumir as tarefas de realização. Rodado ao longo de três performances, em junho de 2016, teve o seu lançamento adiado, primeiro para não retirar público à carreira internacional do espetáculo (a estreia em Londres, no West End, ocorreu em 2017), depois por causa das restrições impostas pela pandemia. Acabou por ser estreado pela Disney +, em julho de 2020 (está atualmente disponível em Portugal, na mesma plataforma)..Nascido em data incerta (1755 ou 1757), Alexander Hamilton é uma figura emblemática entre os founding fathers (à letra: "pais fundadores") da nação americana, isto é, aqueles que assinaram a Declaração de Independência, a 4 de julho de 1776. Entre 1789 e 1795, desempenhou as funções pioneiras de secretário do Tesouro no governo de George Washington, primeiro presidente dos EUA. Seja como for, não se poderá dizer que estejamos perante uma personagem frequente nas obras, teatrais ou cinematográficas, que abordam aquele período da história dos EUA..Essa memória "incerta" terá sido uma das razões para Lin-Manuel Miranda se interessar pela personagem (assumindo mesmo a sua interpretação na primeira temporada na Broadway): na figura sedutora e enigmática de Hamilton encontramos uma perturbante duplicidade histórica que é também, naturalmente, uma fascinante matéria dramática e dramatúrgica..Hamilton foi um dos inspiradores e, mais do que isso, um agente dos valores de liberdade inerentes à fundação dos Estados Unidos da América, ao mesmo tempo que o país escravizava os afro-americanos. Numa entrevista à rádio pública americana (NPR) a propósito do lançamento de Hamilton em filme, Lin-Manuel Miranda sublinhou isso mesmo, dizendo que "o passado não para de ajustar contas connosco". Ou ainda: "Embora tenha assumido posições antiescravatura, Hamilton manteve-se no interior do sistema.".A ousadia artística de Hamilton pode medir-se através da sua pluralidade musical. Assim, se é verdade que a exuberância dos seus quadros nos remete para o riquíssimo património da Broadway e de Hollywood - envolvendo compositores da estirpe de Cole Porter ou George Gershwin, a par de cineastas como Vincente Minnelli -, não é menos verdade que Lin-Manuel Miranda se afirma como um devorador de referências, tão original quanto imaginativo, integrando "desvios" que vão da soul ao hip hop..A harmonia de tais contrastes encontra a sua expressão mais radical na própria distribuição dos papéis. Assim, o elenco de Hamilton altera (apetece dizer, como num jogo: baralha e volta a dar) as correspondências tradicionais entre atores e personagens. Exemplos? Aaron Burr Jr., o advogado e político que matou Hamilton num duelo, e Thomas Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente dos EUA, são personagens brancas interpretadas por atores negros - respetivamente, Leslie Odom Jr. e Daveed Diggs..Quer isto dizer que tudo é intermutável? E que a história não passa de um baile de máscaras? Nada é tão simples, para mais no contexto político-cultural americano, atravessado por conflitos históricos e sociais, materiais e simbólicos que, como foi notório, a presidência de Trump agravou..Lin-Manuel Miranda tem estado a enfrentar algumas insólitas convulsões de tal contexto a propósito do filme Ao Ritmo de Washington Heights, realizado por Jon M. Chu (lançado nos EUA, e também nas salas portuguesas, há pouco mais de uma semana) - trata-se de uma adaptação de In the Heights, o seu musical estreado na Broadway em 2008, centrado na comunidade dominicana de Washington Heights, em Nova Iorque. Algumas vozes têm-se manifestado contra a predominância de atores de pele clara, favorecendo aquilo que consideram uma forma de "exclusão" de afro-latinos. Em qualquer caso, Lin-Manuel Miranda veio pedir desculpa, agradecendo as críticas "honestas" e considerando que "ficámos aquém das expectativas"..Que a conjuntura emocional para lidar com estas questões não será a mais favorável, provam-no as declarações de Rita Moreno, atriz americana nascida em Porto Rico, "oscarizada" por West Side Story (1961). Assim, há cerca de uma semana, em entrevista a Stephen Colbert (The Late Show, CBS), questionada sobre a versão cinematográfica de In the Heights, afirmou que estavam a "atacar a pessoa errada". Considerou mesmo que Lin-Manuel Miranda tem sido um campeão da "latinidade", em especial dos porto-riquenhos, no interior do mundo americano do espetáculo; no dia seguinte, na sua conta do Twitter, Rita Moreno veio esclarecer que tinha menosprezado "a importância dos negros na comunidade latina"....Twittertwitter1405322955026993157.Twittertwitter1405322954062376964.Em qualquer caso, no plano da intervenção social e política, a agenda de Lin-Manuel Miranda tem estado preenchida. Assim, em 2016, na sequência de um encontro com o presidente Barack Obama, integrou um grupo de personalidades que vieram publicamente defender a renegociação da dívida de Porto Rico; um ano mais tarde, foi também um dos artistas envolvidos na angariação de fundos para auxiliar as famílias porto-riquenhas que sofreram os efeitos do furacão Maria..Entretanto, a sua presença no mundo cinematográfico poderá reforçar-se com o lançamento de Vivo, um musical de desenhos animados, produzido pela Sony, para o qual compôs as canções (já está anunciado na Netflix, embora sem data). Vale a pena lembrar que uma das suas composições para outra longa-metragem de animação, Moana (2016), dos estúdios Disney, lhe valeu uma nomeação para o Óscar de melhor canção. A sua ação no interior da tradição do musical consiste em recuperar os modelos clássicos, contribuindo para uma reinvenção dos seus parâmetros temáticos e narrativos. A esse propósito, convém referir que Lin-Manuel Miranda está também a trabalhar na banda sonora de A Pequena Sereia, agora em versão com atores, colaborando com Alan Menken, o veterano compositor da versão animada de 1989 - como se prova, a sinfonia continua por acabar..dnot@dn.pt