Lições do intocável que foi Presidente
Sabia que o homem que ia entrevistar naquela manhã de primavera de 1998 era o primeiro intocável a ser eleito Presidente da Índia e isso reforçava a minha convicção de que se tratava de alguém extraordinário. Apesar de ter já alguns anos de jornalismo, e de até ter estado meses antes em reportagem na Índia, o protocolo impôs que o diretor do DN me acompanhasse. Foi o melhor que me podia acontecer: ter ao lado Mário Bettencourt Resendes, enquanto cruzava sucessivas salas no Palácio de Queluz em direção ao Presidente indiano, fez desaparecer boa parte do nervosismo do jovem de 26 anos. "Você sabe disto", disse-me, para tranquilizar, o Mário, ele que já perdera a conta aos entrevistados de peso.
K. R. Narayanan, que tinha vindo a Lisboa por causa da Expo"98, respondeu a tudo, desde a imagem de Vasco da Gama até às ambições nucleares. Respostas cheias de diplomacia, ou não fosse ele o homem a quem, décadas antes, Jawaharlal Nehru chamou "o nosso melhor diplomata". Londres, Tóquio, Washington, Pequim foram as capitais onde serviu como embaixador dessa Índia que em 1947 se tornou independente.
O Mahatma Gandhi, que com Nehru e Sardar Patel arrancou a liberdade aos britânicos, chamava harijans aos intocáveis, mas a palavra dalit é hoje a mais usada para descrever os milhões que nasceram na base do sistema de castas hindus. E a Constituição indiana proíbe toda e qualquer discriminação, ou não fosse o seu autor B. R. Ambedkar, nascido também dalit.
Apesar da lei, preconceitos com milhares de anos tardam em desaparecer, pelo que devemos olhar com um enorme respeito para o sucesso de Ambedkar ou de Narayanan (ou de Ram Nath Kovind, outro dalit que chegou a Presidente). Narayanan nasceu em 1920 e tinha, pois, 78 anos quando o entrevistei. Tivesse sido aquela uma entrevista de vida e teria de certeza perguntado como foi ganhar em miúdo uma bolsa da família real de Travancore (no Kerala, a região onde Vasco da Gama aportou em 1498). Depois uma bolsa dos magnatas Tata para estudar na Inglaterra, potência colonial. E o que o levou, assim que a independência foi proclamada no Forte Vermelho, na Velha Deli, a regressar e a dedicar-se ao serviço público?
Narayanan morreu em 2005 e deixou como legado um livro que fala da democracia indiana. É, sei-o pelo que vi nas reportagens que lá fiz e pelo que fui lendo, uma democracia cheia de imperfeições. É fácil apontar defeitos, até consoante quem governa: nos tempos do Partido do Congresso era que a Índia se tinha rendido à dinastia dos Nehru-Gandhi, hoje, com os nacionalistas hindus, o dedo é sobretudo apontado à forma como as minorias são tratadas, sendo que minoria pode ser 200 milhões de muçulmanos.
O histórico encontro de líderes no Porto, entre os 27 da UE e o primeiro-ministro Narendra Modi, pode ter perdido brilho por ser virtual, mas nem as vicissitudes da pandemia devem tirar o simbolismo a uma cimeira entre os dois maiores blocos democráticos: 450 milhões de pessoas de um lado, 1400 milhões do outro. E Portugal servir de ponte entre a Europa e a Índia não é apenas uma ideia bonita. É uma possibilidade que se pode tornar mesmo realidade. Não me recordo de na entrevista de há 23 anos o Presidente Narayanan ter alguma vez dado a entender que a memória de Vasco da Gama ou o legado de Goa jogassem contra os interesses de Portugal.
Diretor adjunto do Diário de Notícias