Lições de Londres (2)

<strong>SEGUNDO pensadores políticos do totalitarismo islamita, a Al-Qaeda, parente do nazismo na ideologia comunitarista como na tendência suicidária, chega por outro lado, enquanto vanguarda, a parecer uma espécie de 'leninismo em roupagem islâmica'</strong>
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Só na Palestina e no Iraque - aos quais se somará a Chechénia, onde não se detesta o Ocidente mas sim a Rússia - é que o terrorismo constitui pão de cada dia, com largas bases onde recruta bastante gente disposta a morrer matando. Mas na Palestina o fenómeno não precisou da Al-Qaeda para se manifestar e a sua causa é local, originariamente alheia à pulsão fundamentalista pan-islâmica; para o caso caucasiano vale um discurso análogo; e, no Iraque, as carnificinas jihadistas de Al-Zarqawi surgiram na esteira das dos baasistas órfãos de Saddam Hussein, que assentam no desespero de gente sunita corrida do poder em 2003 por ocupantes estrangeiros. Ora o baasismo é um nacionalismo, de resto bem estreito desde o colapso da visão pan-arabista sob cujo signo nasceu: pois convém lembrar que o partido Baas, nacional e socialista, ideologicamente concebido por um cristão (Michel Aflak) começou por apelar à mais vasta "nação árabe" e abrangeu inicialmente a Síria e o Iraque - onde os organismos partidários eram supostos constituírem secções suas - numa unidade afinal tão efémera como a que entre 1958 e 1961 ligou a Síria ao Egipto no seio de uma Republica Árabe Unida dirigida por Nasser. E em 1963 ainda se tentou retomar este sonho unitário, alargando-o ao Iraque, depois de os baasistas de Bagdad chegarem ao poder, mais tarde que os de Damasco; mas foi em vão.

De qualquer modo, a islâmica utopia foi algo que, unido ou separado (tão separado, nos anos 80, que Assad, o ditador sírio, apoiou Khomeini na guerra contra Saddam) nunca o partido Baas professou. É verdade, já por mim referida há oito dias, que a desilusão dos nacionalistas laicos médio-orientais e norte-africanos tem levado alguns ou muitos deles a procurarem, por oportunismo ou em plena crise religiosa, aproximar-se da Al-Qaeda. Não se deve menosprezar isto, tal como se não deve rejeitar liminarmente a ideia, também propicia a convergências políticas, segundo a qual "a Al-Qaeda não é fruto exclusivo da religião islâmica" mas sim, antes do mais, "rebento do radicalismo ideológico de uma certa modernidade", inspirado pelas mesmas filosofias alemãs que no século XX animaram os totalitarismos nazi e comunista. Ambos estes precedentes foram atenta e veneradoramente estudados pelos pensadores políticos do totalitarismo islamita, na linha dos quais (o maior será Said Qutb, 1906-1966) a Al-Qaeda, parente do nazismo na ideologia comunitarista como na tendência suicidária, chega por outro lado, enquanto vanguarda, a parecer uma espécie de "leninismo em roupagem islâmica".

Tenho estado a citar um estimulante e preocupado artigo de Henrique Raposo (Totalitarismo islamitainAtlântico, n.º 5, Agosto de 2005); e creio que esta breve digressão já chega para afastar do meu discurso acerca da inoperância da Al-Qaeda qualquer perfume de fácil optimismo. De resto, lembrem-se os leitores, a propósito, de que falei em inoperância eficaz. Para entendê-la, é preciso repartir as acções terroristas em apreço por três espécies:

a) Da primeira, fazem parte os atentados levados a cabo nos Estados Unidos, inimigo principal. A bem dizer, o plural é aqui indevido porque nos States nada mais aconteceu depois do 11 de Setembro. Aí, a inoperância da Al-Qaeda parece total e, caso se prolongue, poderá tornar-se irreversível. O dito ben Laden ou quem por ele mande deve estar perfeitamente consciente do mal que esta imagem de impotência lhe faz, quando periodicamente promete aos EUA que há-de infligir-lhes tormentos ainda maiores do que o de há quatro anos. Mas quanto mais tempo passe menos esta conversa convencerá: ao derrubar as torres gémeas e ao esventrar o Pentágono, falhando por pouco o Capitólio ou a Casa Branca, a Al-Qaeda elevou soberanamente a fasquia; e pagará muito caro esse desplante caso não volte a saltar acima dela como um anjo vingador. A este nível, a eficácia (marginal) da sua inoperância talvez consista na desmobilização de boa parte dos norte-americanos, pouco dispostos hoje a aceitar, no Iraque, um número de baixas que, para tempos de guerra, não é nada alto...

b) À segunda espécie, pertencem as acções levadas a cabo em países muçulmanos e visando regimes corruptos ou cidadãos e interesses ocidentais que lá se encontrem. Numerosas e consistentes no Iraque, onde os fundamentalistas andam à boleia dos nacionalistas e esperam servir--se deles - mas não podendo esquecer que Estados laicos lhes infligiram, por exemplo na Argélia e no Egipto, amargas derrotas - essas acções têm sido raras (uma aqui, duas ali, nenhuma acolá) e até hoje inconsequentes em quase todo o arco islâmico, de Marrocos à Indonésia; desmentindo quem profetizou que as tropas anglo-americanas, ao caírem sobre a Mesopotâmia, provocariam uma tremenda vaga antiocidental. Ora, tendo em conta a simplicidade tecnológica das formas terroristas predominantes nesta área, a começar pela das bombas à cintura de voluntários suicidas, aquilo que se pode garantir, por maiores que sejam os pregões iraquianos, é que a Al-Qaeda continua a não dispor de um enorme apoio dos crentes em todo esse mundo de Maomé, onde nunca houve manifestações anti-americanas comparáveis às de certas capitais europeias e onde as vocações de martírio combatente pouco se vêem.

c) Para entender o terrorismo da terceira espécie, que tem por objecto a Europa, há que ter bem presente as outras duas. Para um Islão expansivo, o Velho Continente interessa enquanto tal, sobretudo lá onde os muçulmanos são multidão; mas também é claro que ao investir sobre Londres (muito estimulada pelo sucesso de Madrid) a Al-Qaeda também quis: à uma, reforçar a sua mão no Médio Oriente e especialmente no Iraque, de onde muito gostaria de expulsar os ocupantes e onde a construção de um novo Estado sobremaneira a inquieta; e, à outra, fazer com que o seu público (sobretudo o muçulmano) se esqueça, por um tempo, de que ela já devia ter cumprido a sua promessa de voltar a atacar de caras a América, no território desta.

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