Lições da fé em tempos de crise

O DN fez a pergunta: "Como irá viver-se a fé depois da crise?". Sheik David Munir, Imã da Mesquita de Lisboa, desde 1986, responde.
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Desde sempre a humanidade foi confrontada com desafios de variada ordem, e este não é exceção. No entanto, a singularidade deste ocorre essencialmente tendo em conta a existência de um conjunto de fatores, cena até então inimaginável: a invisibilidade, a propagação em massa (fruto do fenómeno da globalização) e o desconhecimento generalizado assustador.

Como criar ferramentas para lidar com este problema na fragilidade da condição humana e contra um vírus que parece dotado de características divinas?

Pois bem, das várias soluções que se oferecem, e naturalmente que as há para todos os gostos, a fé (em Deus, para nós os crentes) é um dos ingredientes de uma receita espiritual que em nosso entender deverá ser usada não apenas e no vernáculo gastronómico q.b.

Não há melhor forma de lidar com esta pandemia para um crente do que enfatizar a nossa relação com Deus, na procura de respostas para esta mesma situação em que todos nos encontramos, em que afinal as diferenças de idade, de género, de etnia e de religião se tornam absolutamente indiferentes.

A fé na capacidade humana, nas descobertas da ciência ao serviço da humanidade, na simples união entre os povos, serão outras formas de encontrar um horizonte de esperança para os difíceis tempos que vivemos.

Esta mesma fé leva-me a crer que tudo tem origem divina e, portanto, inevitavelmente este pesadelo, mas rejeito alimentar a ideia de que Deus quis castigar-nos com tal, em contrapartida prefiro encarar que é mais um dos seus testes misericordiosos que conduzirão a algo melhor, que todos almejamos - isto sem prejuízo das múltiplas incógnitas que ocorrem sobre o futuro do nosso quotidiano -, parafraseando alguém, diria: "O futuro a Deus pertence" e a nós basta-nos olhar para Ele na crença de que melhores dias virão.

Nas minhas preces, procuro sempre acautelar os pedidos de todos quantos me procuram, especialmente a comunidade e os meus vizinhos, que sendo dotados de um direito especial no islão ganham novo contorno e importância nesta conjuntura especial e por razões óbvias - a cultura de proximidade vence novamente sobre a egoísta vivência em metrópole que teima em fazer-nos esquecer a importância de quem mora ao meu redor.

Só assim, conseguimos, por vezes à janela ou com uma mensagem de carinho e esperança que nos deixam (não raras vezes virtual) lidar com esta dor que nos invade os corações, pela circunstância de nos encontrarmos privados de ir à Mesquita, neste auspicioso mês do Ramadão, dor para nós igualável à de não conseguirmos ver os nossos familiares.

Saliente-se que nesta época do sagrado mês do Ramadão, momento alto da agenda dos muçulmanos a nível mundial, os crentes deslocam-se à mesquita não só para orar, mas também para fazer uma refeição conjunta - o iftar - que cumpre um anseio social da vivência em comunidade.

Assolado por uma onda de otimismo, própria dos crentes, diria que todos nós aprenderemos com esta crise, que fez parar em terra os aviões de que tanto gosto, e esta deve conduzir-nos a uma reflexão crítica sobre as muitas agressões que andámos a fazer contra a natureza e, porque não dizê-lo, sobre os humanos e sobre o futuro que queremos para nós - enquanto parte de uma fração em que o todo é esta mesma humanidade, na qual aquilo que nos une é indubitavelmente maior do que aquilo que nos separa.

Que esta pandemia nos sirva de lição e que o Ramadão de 2020 cultive no coração de cada um de nós as sementes típicas deste mês atípico: a da paciência, da disciplina e da compaixão.

Imã da Mesquita Central de Lisboa desde 1986

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