Leonor Teles sorri quando lhe perguntamos se está cansada de falar acerca do filme. Está fechado há um ano, já passou por festivais (ganhou o Prix International de la Scam no festival Cinéma du Réel em Paris), pelo meio a realizadora até já regressou às curtas-metragens, mas disso ainda não quer falar. Terra Franca, que hoje chega às salas, é a primeira longa-metragem daquela que, em 2016, venceu um Urso de Ouro no Festival de Berlim com Balada de Um Batráquio..Mais uma vez, Teles virou-se para aquilo que conhecia e demorou-se nisso, para o compreender e olhar melhor. Em Terra Franca passamos um ano na família de Albertino Lobo, um pescador de Vila Franca de Xira, terra natal da realizadora. Conhecemo-lo qual herói sozinho no rio e muito mais leve em casa, rodeado da mulher, Dália, e das duas filhas, Lúcia e Laura..Foi para o cinema por causa da fotografia. No caso do Albertino Lobo, o que queria captar dele para que a fotografia não chegava?.O cinema consegue atingir níveis que se calhar a fotografia não consegue. E a verdade é que fui para o cinema por causa da fotografia, mas apaixonei-me pela fotografia em movimento. No caso do Albertino, ele é uma figura que me fascina. É um homem simultaneamente simples e misterioso. Há um lado dele ao qual eu não tenho acesso nem nunca vou ter, mas isso também faz parte das pessoas que filmamos. Elas escolhem aquilo que querem ou não revelar. Acho que ele tem uma sabedoria que merecia ser contada..Acha que nele houve uma escolha consciente entre o que mostrar e o que não mostrar?.Não. Até porque ele não tem a noção do poder da imagem que o resto das pessoas têm. Ele recusa-se a ter telemóvel. No máximo tem a televisão que tem em casa para ver o futebol e o telejornal..Conhecia-o de Vila Franca de Xira?.Sim. Eu andei com a filha mais nova dele na escola. Conheço a família há bastantes anos e eles conheciam-me a mim, obviamente que não a este nível. Foi preciso, para o filme, estreitar relações..Já nessa altura ele era para si uma figura misteriosa?.Não, não. Só quando eu em 2010 ou 2011 andei de barco com ele pela primeira vez..Ele transforma-se?.Completamente. Ele aí revela-se, no rio é que ele se revela inteiro, completo, uno com a natureza, pertencendo ao seu habitat. Ele deu-me boleia para ir filmar outra coisa. Falámos pouquíssimo nessa viagem. Ele é que de repente transfigurou-se e eu fiquei: Ah..O espectador começa por conhecê-lo numa transformação inversa. Vemo-lo primeiro no rio e só depois, muito mais leve, diferente, com a família. Porque é que quis filmar também a família e não apenas Albertino?.Porque o Albertino é muito mais do que isso. Aquilo que fui descobrindo à medida que comecei a ir à pesca com ele e que passava tempo com ele é que ele tinha dois universos, o do rio e o familiar, e que os dois se completavam. Eu precisava também de trazer isso para o filme. Só assim é que teria um verdadeiro retrato dele..Como é que esses dois universos se completam?.Ele consegue ter um equilíbrio entre esses dois lados da vida dele que se calhar muitas pessoas não conseguem ter. Ele adora pescar, adora estar sozinho no rio. Sem isso fica completamente perdido. Todas elas [mulher e filhas] me disseram que não há um dia em que o Albertino não saia para o rio. Só se estiver vento ou as correntes estiverem muito fortes. A Dália contou-me histórias de momentos da vida dele em que ele trabalhou sem ser na pesca e estava a apagar-se completamente..Tornar a câmara invisível foi um processo? Para que ele continuasse a ser o mesmo quando ela estava ligada..Claro. Isso era a chave do filme resultar ou não. Eu não queria de todo ter um filme em que as pessoas falassem para a câmara ou falassem para mim. Obviamente que a minha presença está lá. A pessoa que estava lá atrás da câmara era eu, em todos os momentos. Mas não queria que isso fosse uma coisa assim tão óbvia, tão presente. Aí eu sabia que a única coisa que estaria do meu lado era o tempo. Daí eu ter passado tanto tempo com eles. Nos primeiros seis meses estive sozinha, e a seguir o Rafa [Rafael Gonçalves], quem faz o som, começou a vir comigo. Éramos só dois..Como é que definiram a forma como eles apareciam no filme? O ser ou não personagem de si mesmo..Isso não foi falado. Muitas das cenas são observação pura. Aquilo acontecia. Depois havia outra parte em que nós falávamos sobre o objetivo da cena, mas a maneira como chegavam lá era deles..Havia um guião muito lato?.Nem tinha um guião. Tinha um conjunto de cenas, uma estrutura, que queria filmar, para não estar a filmar para sempre..O Albertino mudou ao longo do filme?.Há aquele evento no filme em que a dinâmica deles se altera um bocado: quando ele perde a licença [para pescar]..Aconteceu mesmo?.Sim. Nada ali foi inventado. Se houve coisas que foram encenadas foram sempre com base em acontecimentos. Não cheguei lá e inventei uma cena..Porque quis incluir o casamento?.O meu objetivo era sempre filmar um ano na vida deles. No inverno mostrei algumas imagens daquilo que tinha filmado e eles ficaram tão contentes e tão agradados com aquilo que viram que, sabendo que eu queria ficar até ao verão, eles próprios é que me convidaram para filmar o casamento. E que melhor maneira de acabar uma rodagem do que com uma festa destas?.Porque é que gostaram tanto de ver?.Gostaram sobretudo das imagens do Albertino, aquela figura heroica no barco. Acho que tem um bocado que ver com a linguagem a que a Dália está habituada, por exemplo, que é uma linguagem mais de televisão, de telenovela, que se calhar era o que ela esperava ao eu estar a filmar. E, de repente, vê uma coisa bastante diferente. Acho que os surpreendeu pela positiva..No casamento foi fácil perceber como é que ia captar aquela alegria toda ou foi atrás? Além disso, nada se ia repetir..Nessa altura nós já estávamos tão dentro daquela família que já não havia essa coisa do medo do ridículo. Ali não podíamos repetir, mas no filme quase nada foi repetido. Alguma vez havia dinheiro para repetir um casamento? Aquilo é o que é, o casamento deles, nós só filmámos. Tivemos o privilégio de poder estar lá..Foi importante filmar uma família do sítio de onde a Leonor vem?.Absolutamente. Porque é de onde eu venho. Acho que é importante dar a conhecer os sítios de onde vimos..Mas tem só esse sentido, para fora, de dar a ver, ou tem também que ver com perceber as coisas de outra forma?.Acho que os dois. Ir descobrir ou redescobrir uma coisa que achávamos que devia ser assim, e dar a descobrir as pessoas que não a conheciam. Para mim, até mais do que ser na minha terra, era serem aquelas duas pessoas em particular, o Albertino e a Dália. Acho mesmo que têm um estilo de vida e uma maneira tão bonita de viver que a história deles merecia ser contada. Eu estava lá para ouvi-los e para dá-los a conhecer..Quando fala dessa maneira bonita de viver está a falar da família que construíram e do que são fora dela?.Sim. Acho que há coisas de que não é preciso estar a falar muito ou a explicar muito. É uma questão de sentimento. Eu sinto mesmo que eles são pessoas muito bonitas, e famílias assim não há aos pontapés..Voltou a passar muito mais tempo em Vila Franca..Isso não me chateou. É a minha terra..É muito perto de Lisboa, onde vive..Não houve propriamente um regresso para descobrir qualquer coisa. Não dá propriamente para cortar e depois voltar cinco anos depois. Eu vou lá regularmente..Costuma dizer que não tem necessidade de ser cineasta a tempo inteiro..Não tenho nem quero..Quando está a trabalhar para outras pessoas não está a pensar como é que faria no lugar delas?.Não. Obviamente que tenho de dar o meu contributo, mas no papel que estou a fazer. Ao trabalhar com outras pessoas, ao observá-las, aprendemos coisas que depois podemos trazer para o nosso trabalho. E depois fico com uma pica gigante para ir filmar. Ter um espetro de coisas para fazer amplia a minha maneira de pensar e de ver os filmes, de como vou tentar chegar a eles. Todas essas vivências contribuem para eu tentar fazer filmes melhores. Até porque não vivi assim tanto para estar só a fazer filmes. E não tenho assim tantas ideias para filmes, é quando há alguma coisa que me puxa ou que me inquieta..Este filme foi filmado em digital, mas aparece-nos com um grão que parece de película. Porque escolheu fazê-lo?.Porque é o que eu gosto. Nunca é só uma razão estética, a estética está aliada a um lado emocional: quando olhamos o que é que uma imagem nos faz sentir?.Gostava de ter filmado em película mas por ser tão caro filmou em digital?.Claro que há um lado de mim que quer sempre filmar em película. Neste caso era um bocado impossível. O objetivo era eu, sozinha, entrar. Para filmar em película era impossível. Tinha de ter mais pessoas, seria um filme totalmente diferente..O que é que a película tem?.É o meio em que me sinto mais próxima, a nível cinematográfico. Acho que há uma magia quando se filma em película. Quando estão a filmar em digital as pessoas são muito mais relaxadas: filmam e filmam e filmam. Em película não. Exige uma concentração e uma dedicação, pensas muito mais sobre as coisas. Quando vou filmar uma cena não posso filmar 50 planos..Neste filme o grande trabalho foi feito na montagem?.Foi exaustivo. Aí é que foi o trabalho, trabalho de partir pedra. Tinha entre 90 e cem horas [de material]..Desenvolveu uma relação forte com esta família?.Claro. Bastante. Mas isso para mim é fundamental em qualquer filme que faça, a relação que estabeleço com as pessoas que filmei. Para mim só quando existe uma relação de confiança é que é possível fazer um filme. Eles confiam na pessoa atrás da câmara e é aí que consigo fazer qualquer coisa. Senão estou só a ir lá sugar a alma e depois vou-me embora. Não me interessa fazer filmes assim.