Lenny Kravitz. Quando um hippie se zanga
Quando Lenny Kravitz se estreou nos álbuns em nome próprio, o inquilino da Casa Branca era, há poucos meses, George Bush, pai, anteriormente o vice-presidente de Ronald Reagan. Depois, vieram Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. Por fim, chegou Donald Trump. Com tudo isto, escoaram-se quase trinta anos, as políticas norte-americanas conheceram avanços e recuos, até desaguarem no presente estado "de calamidade" - e não é preciso já ter lido Bob Woodward para chegar a essa conclusão. O músico nova-iorquino, nascido a 26 de maio de 1964, vem juntar-se, com a edição de Raise Vibration, décimo primeiro disco de originais de uma carreira muito mais acarinhada pelo público do que pelos analistas, à legião dos irados contestatários, dos furiosos antagonistas das correntes práticas presidenciais. E cedo se percebe que a energia emergente dessa zanga, profunda mas também visceral, contribui de forma decisiva para revitalizar Kravitz e para espevitar as suas canções.
Não se pense que esta nova "atitude" afasta o músico de alguns dos seus temas favoritos, senão infalíveis: a religiosidade e a crença no entendimento e nas soluções descobertas "em nome do amor" continuam a ocupar uma parte substancial das preocupações de Kravitz. Basta olharmos para a convicta e ritmada We Can Get it All Together (com um título que não deixa margem de erro), para Raise Vibration (a canção), também marcada por uma guitarra rugosa e por uma cadência rock, que quase recupera os hinos de fraternidade global que nos habituámos a ouvir com Bob Marley, para Here to Love, toda desenhada a partir do piano, uma espécie de balada que pretende convocar toda a raça humana a fazer prevalecer aquilo que a une sobre o que fratura. Isto para não falar do funky contagioso que prevalece em The Majesty of Love, mais eficaz pelo embrulho musical do que pela "mensagem", e de I'll Always Be Inside Your Soul, um midtempo que se torna fácil de imaginar com a figura de Lenny, um perene símbolo sexual (que o digam Lisa Bonet, Kylie Minogue, Vanessa Paradis, a modelo brasileira Adriana Lima, Nicole Kidman e mais umas quantas, alvos do seu intenso afeto). Neste último caso, já houve quem escrevesse que o tom da coisa evoca, quase em forma de tributo, Stevie Wonder.
Vai a todas
Há mais piscadelas de olho a outros criadores "estruturantes". Michael Jackson, por exemplo, vê a sua voz samplada para cumprir, com o brilho e o efeito conhecidos, os coros de Low, escolhida como segundo tema de apresentação do álbum, muito encostado ao estilo do criador de Thriller, mas necessariamente mais sóbrio. Prince também não fica entre os ausentes, porque é da sua veia elétrica que parece nascer o funk abrasador de Who Really Are the Monsters?, que deriva, sem reticências, para uma autêntica jam session, dando roda aos instrumentos, maioritariamente entregues ao próprio protagonista - como acontece em quase todo o disco, onde as únicas presenças adicionais constantes são as do guitarrista Craig Armstrong e as do teclista David Baron, sem prejuízo de outros recrutas de ocasião. Marvin Gaye, cada vez mais esquecido, vê o seu espírito poisar sobre o libelo acusatório que se vai desenvolvendo, em formato soul, em It's Enough, tão longa (quase oito minutos) como combativa. São, de resto, estas as duas mais fortes armas de arremesso político, não ideológico mas quase comportamental, que concentram o antes referido antagonismo de Kravitz com o "estado da nação".
Para aqueles que procurarem uma terceira via, entre as duas maiores linhas - na palavra, muito mais do que na filiação musical - que se encontram neste Raise Vibration, há duas escapatórias de luxo: primeiro, 5 More Days 'til Summer, o lamento esperançado de alguém que anseia por calor, férias e dolce fare niente, depois de "demasiado tempo a trabalhar numa fábrica", cuja arquitetura pop é sublime, pela leveza e por escapar à regra "épica" de que Kravitz continua a mostrar-se adepto; depois, Johnny Cash, uma evidente homenagem ao cantor (1932-2003) e ícone expressamente indicado no título, recorrendo ao amor e à harmonia que ele e a mulher, June Carter Cash (1929-2003), projetavam sobre quem se aproximasse do casal. Musicalmente, é o momento mais aventureiro de Kravitz, que, à semelhança do que se verifica desde os primeiros passos, continua a "ir a todas", descobrindo a sua fórmula resolvente entre rock, soul, pop, funky e baladas "sem medo". Percebe-se que esta base, quase diletante, o prejudique junto da crítica especializada, pouco dada a fusões (ou indecisões?). Em contrapartida, também se entende que o público continue a favorecê-lo com o reconhecimento e o aplauso. No meio, fica a certeza de que Raise Vibration é bastante mais convincente e estimulante do que os seus antecessores mais recentes, porventura a melhor oferta que Lenny nos fez no presente século. E isso não é pouco.
Lenny Kravitz
Raise Vibration
Ed. Roxie/BMG
PVP: 14,99 euros