LEFFEST: quando Wim Wenders filmou o "paraíso perdido" de Sintra
A história da origem de O Estado das Coisas (1982) não podia ter uma natureza, e angústia, mais cinematográficas. No início da década de 1980, Wim Wenders vivia um impasse nas filmagens de Hammett, Detetive Privado - produzido pela Zoetrope Studios de Francis Ford Coppola -, devido às suas incompatibilidades com o modo de produção norte-americano. Por essa altura, tomando conhecimento de que o realizador Raúl Ruiz estava em Portugal a filmar O Território e que se lhe acabara o material fílmico, parou em Lisboa (vindo de Berlim, a caminho de Nova Iorque) para deixar alguns rolos que tinha. Foi então que se deparou com um dos panoramas mais invulgares de uma rodagem, onde tudo decorria pacificamente.
No seu livro A Lógica das Imagens, o cineasta alemão recorda assim essa circunstância e lugar, Sintra, onde viria a filmar O Estado das Coisas: "Isto era, para mim, o paraíso perdido. Prolonguei a minha estada, passeei pelo local e dei com aquele hotel vazio que tinha sido destruído no Inverno anterior por uma tempestade ou por um furacão. Parecia uma baleia que dera à costa." Não há melhor descrição para a imagem que vemos no filme do tal hotel abandonado da Praia Grande. Esta é a paisagem onde o sentido da espera se instala - porque O Estado das Coisas é um filme sobre a espera, sobre a incerteza que ele experimentara com Hammett, e Ruiz com O Território. Ou melhor, é sobre o receio que Wenders alimentava, na altura, de fazer um filme na América.
O que se vê então é uma equipa de cinema que suspende trabalhos, por falta de película e dinheiro, com a agravante de o produtor americano ter simplesmente desaparecido. Nesta interrupção, Wenders cria todo um ambiente onírico à beira-mar, com os membros da equipa, cada um para seu lado, a usar do tempo suspenso ora para desafiar a máquina de escrever, ora para ler um romance (The Searchers, referência nada aleatória), entre outras expressões de uma inércia involuntária. E nos interstícios disto está um país fantasma, Portugal, que partilha a indolência do retrato.
Pelo modo como se descarta absolutamente da ideia de uma narrativa arrumadinha, para antes abraçar os indícios visuais de um "naufrágio", O Estado das Coisas é dos mais belos filmes de Wim Wenders, em que tudo acontece quando não está nada a acontecer. Sendo uma das primeiras produções internacionais de Paulo Branco (vencedora do Leão de Ouro no Festival de Veneza), traduz o espírito daquela época em que o cinema independente representava uma entreajuda e colaboração puramente cinéfilas. Vejam-se os nomes que aqui se reúnem, desde Samuel Fuller ao diretor de fotografia Henri Alekan (de A Bela e o Monstro de Cocteau, ou Férias em Roma de Wyler), passando por Robert Kramer, no argumento, Artur Semedo, entre os portugueses da equipa, Viva, a musa de Andy Warhol, Paul Getty Jr., Roger Corman, etc.
O encanto de O Estado das Coisas não se desvaneceu com o tempo, antes pelo contrário. E pode ser hoje redescoberto numa cópia digital restaurada, com a presença do cineasta para uma conversa no final da sessão.
Centro Cultural Olga Cadaval
Sexta-feira, 22, pela 21.00