Passamos pela estreita porta do lado direito, mesmo ao lado do portão de ferro que está na memória de muitos (mesmo daqueles que nasceram há menos de 40 anos). Lá estão as faixas do Solidariedade, o sindicato, os retratos de João Paulo II, o Papa polaco, seis vasos de flores fixos nas grades. Chamava-se, em 1980, Estaleiro Lenine. Hoje chama-se Estaleiro de Gdánsk (Stocznia Gdanska). Entramos numa alameda que já não lembra o gigante fabril de outrora. O edifício moderno, que evoca um grande navio, tem um cartaz à porta: "A Europa começa aqui.".As frases significam aquilo que os leitores quiserem ler. Alguns podem ver neste início da Europa o fim de uma era. Para uns isso é bom, para outros será mau. Lech Wałęsa trabalhou aqui, como eletricista, durante nove anos (1967-1976). Agora tem mais de 40 doutoramentos honoris causa, a Legião de Honra francesa, os grandes-colares da Ordem da Liberdade e do Infante D. Henrique em Portugal. No estaleiro de Gdansk, Walesa já não tem de picar o ponto. Tem um gabinete, assessores, e recebe visitas diariamente, do mundo inteiro. Continua a gostar de falar, em polaco, muitas vezes intraduzível. Quando entra na sala, de bigode aparado (já não em forma de ferradura), tem uma camisola cinzenta com a palavra "constituição" escrita em quatro linhas de letras (kon-sty-tuc-ja) e umas calças de ganga. Usa uns óculos laranja e um relógio dourado. Tem 76 anos. "Enquanto não me fecharem o caixão, estou sempre pronto para discutir", garante..Quando se aproximam os 40 anos exatos da fundação do seu sindicato, em agosto próximo, o Solidariedade, que transformou a Polónia e influenciou uma mudança drástica no mundo inteiro (o fim da Guerra Fria, dos "dois blocos"), Wałęsa anuncia que vivemos, agora, num "período de transição". Ele chama-lhe a "era da palavra". E usa várias para a descrever, boas e más.."O meu pai morreu durante a segunda Guerra Mundial. Mas se eu pudesse falar com ele hoje e descrever-lhe a Europa que temos agora, onde não há fronteiras, nem soldados a guardá-las... Eu não conseguiria acabar esta frase porque o meu pai morreria segunda vez, de ataque cardíaco. Mas é isso que temos: podemos trabalhar em qualquer país da Europa. Mas falta-nos o principal: Quais são os valores? Qual é o sistema económico? Como lidamos com o populismo, a demagogia e as mentiras? O que deve ser feito?".Tentamos contrariar a sua segurança - Wałęsa está sentado, com as pernas esticadas, gesticula muito, parece absolutamente certo de todas as ideias que lança - e perguntar-lhe pela Polónia de hoje. Como se explica que, 40 anos depois do Solidariedade, depois de ter "derrubado o comunismo", como ele próprio afirma, de ter sido eleito presidente, haja hoje um governo eurocético a dominar a política interna e a articular-se com outros (como o da Hungria) num novo nacionalismo?."E como se explica o que se passa nos Estados Unidos? Os políticos de todo o mundo não encontraram soluções adequadas aos tempos modernos. O resultado está aí, os demónios do passado despertaram. As pessoas querem mudanças e elegem políticos que as prometem. Foi assim que Donald Trump, como o governo polaco, chegaram ao poder. Mas a cura que eles oferecem, o remédio, é completamente errada. Eles estão a resolver estes problemas modernos, recorrendo a soluções do passado. Estes populistas, demagogos, mentirosos, sabem falar sobre as preocupações das pessoas.".É sempre assim que se refere aos nacionalistas que ganharam poder na Polónia, na Hungria, na Itália, nos EUA, no Brasil: "Populistas, demagogos, mentirosos." Mas não os desvaloriza. São, para ele, o resultado da falta de estratégia e de ideias dos políticos sociais-democratas, liberais e democratas-cristãos..Wałęsa, o Solidariedade e o estaleiro são a imagem da mudança radical dos últimos 40 anos. Lá fora, enquanto falamos, está a ser montado o palco onde se assinala um ano do assassínio de Paweł Adamowicz, o autarca oposicionista de Gdansk, esfaqueado num concerto de beneficência em 14 de janeiro de 2019. Wałęsa rompeu com o Solidariedade, o seu sindicato, que entretanto se aproximou da nova força dominante do Lei e Justiça - o partido criado por Jarosław Kaczyński, ex-chefe da Casa Civil de Lech Wałęsa, quando este era Presidente da Polónia, em 1991. Hoje, o sindicato terá menos de 10% da força que já teve, quando tinha dez milhões de membros, no início da década de 80. Toda a Polónia deu uma imensa volta nestes 40 anos, mas Wałęsa não desanima, e continua a autografar T-shirts do Solidariedade, apesar do afastamento político.."Eu sou um revolucionário", explica-nos. Usa o presente.."O meu papel, que eu atribuí a mim mesmo, foi simples: derrubar o sistema e dar à nova geração os meios para resolver os problemas do futuro. E decidi afastar-me. Mas não gosto do que vejo. Por isso quero envolver-me. E espero que os mais novos encontrem as soluções e as respostas para as perguntas que me fazem. Confio na sabedoria deles.".Em alguma medida, o percurso e a aura (a autenticidade) de Wałęsa têm parecenças com a história de um português que conheceu: Mário Soares. Ambos lideraram uma transição política radical, ambos foram presidentes apoiados por muito mais do que as bases dos seus partidos, ambos foram derrotados claramente quando tentaram regressar e, mais tarde, olharam criticamente para o que defendiam quando ganharam. Nem o português nem o polaco aceitaram figurar apenas na prateleira de um museu de memória política. Há, também, um mar de diferenças a separar Soares e Wałęsa, como é óbvio. Da religião à política..Wałęsa recebeu a notícia de que ganhara o Prémio Nobel da Paz, de 1983, à porta de uma casa no campo, onde estava num limbo semilegal, pouco depois de o líder comunista Wojciech Jaruzelski ter levantado a "lei marcial" que ilegalizara o Solidariedade. Enquanto o filmam e lhe perguntam o que pensa do prémio, Wałęsa vai dando dentadas numa maçã verde, como se a notícia fizesse parte da rotina daqueles dias..A Polónia estava numa maré de prémios, é um facto. E todos eles tiveram um papel político. Em 1978, João Paulo II é eleito Papa, em outubro. Em junho de 1979, visitou a Polónia. Esse é um momento essencial para o que se passou um ano depois, com a criação do Solidariedade, a greve no estaleiro de Gdansk e a ascensão do eletricista bonacheirão que agora nos recebe. Em 1980, o Prémio Nobel da Literatura é entregue a outro crítico polaco do comunismo, Czesław Miłosz. Um ano depois, em 1981, Andrzej Wajda recebe a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, pelo seu filme Człowiek z żelaza (O Homem de Ferro), em que Lech Wałęsa desempenha um pequeno papel. Em 1983, é o próprio sindicalista que recebe o Nobel, mas falta à cerimónia oficial, com medo de ser expulso da Polónia.."Agora estou velho e doem-me os ossos. Amaldiçoo a divisão do mundo", diz, teatral, no fim da entrevista.."Este mundo está horrivelmente dividido. As pessoas comportam-se como os rios: quando há muitas desigualdades as pessoas comportam-se como as cataratas do Niagara. Quando há igualdade, quase não há ondas. Temos de equilibrar os níveis de desenvolvimento. É muito mau quando alguns beneficiam de uma coisa e outros não a podem alcançar. Como derrubar as divisões causadas pela desigualdade de desenvolvimento? Como acabar com as fronteiras religiosas? Esses são os problemas do nosso tempo.".Mais uma vez, critica, falta estratégia aos políticos desta era. Para ele, os problemas têm de ter uma resposta a outra escala. Se a Europa não tem fronteiras, devia ter também uma forma de decidir as coisas "continental", porque é essa a dimensão certa. Enquanto outros assuntos, como a crise ambiental, só poderão ser resolvidas a uma escala global..Isso é o mais longe em que Wałęsa vai, no que toca a "soluções". E lança logo uma ironia carregada de autoestima: "Se eu tivesse uma resposta concreta para a sua pergunta, receberia o segundo Prémio Nobel (risos).".Não é por cautela que evita propor uma nova agenda. Aliás, a moderação é a última das suas qualidades (basta ouvir o que diz sobre a China ou a homossexualidade). Nem é evidente a sua leitura política de um mundo que já não se divide entre comunistas e capitalistas. Se é evidente que continua a detestar os primeiros, parece ser cada vez mais crítico do sistema que sempre defendeu. E é duro com a Europa nisso mesmo: "Quando o comunismo estava a cair eu pensava que existiria uma estratégia para integrar os países de Leste. Estava enganado. Os governos europeus queriam acabar com o sistema comunista, mas não faziam ideia do que seria o futuro. Não havia estratégia nenhuma.".Quem não gosta de o ouvir chama-lhe "senhor OTUA" - as quatro letras da sua camisola política que se podem ler quando veste um casaco, e que não significam nada em polaco..Wałęsa, 40 anos depois do Solidariedade, parece não ter muitas esperanças no presente. Prefere passar a responsabilidade para a geração dos seus netos. "A vontade e o poder de agir virão ou da sabedoria ou do medo sobre o que pode acontecer se não fizerem nada."