Landscapers: entre um crime real e a fantasia do cinema
Dois corpos baleados e enterrados no quintal de uma casa em Nottinghamshire em 1998. Ninguém deu por nada. Durante 15 anos, Susan e Christopher Edwards mantiveram este segredo bem guardado. Os cadáveres eram dos pais dela, e terá sido o marido, às suas ordens, quem matou e enterrou os sogros no jardim dos fundos da moradia - é pelo menos esta a versão assumida pelo juiz que, em 2014, os condenou a uma pena mínima de 25 anos de prisão. Depois de cometer o crime, viveram das pensões de reforma das vítimas, venderam a respetiva casa, chegaram a ir viver para França, e a ocultação do caso foi algo aparentemente simples na pacatez daquele meio britânico. Quer dizer, os vizinhos acharam que os pais de Susan apenas se tinham mudado. E por essa altura até viram o genro a cavar um grande buraco... para plantar rododendros. Se Hitchcock apanhasse esta história chamava-lhe um figo.
Quem a apanhou, no entanto, foi Ed Sinclair, o criador da minissérie Landscapers (HBO), que ao ler no The Guardian sobre este duplo homicídio, deteve-se mais nos detalhes à volta do casal do que propriamente na questão da sua culpa. Sinclair, marido da protagonista, Olivia Colman, sempre se interessou pelas razões de quem comete crimes, bichinho que lhe ficou das aulas de Direito na universidade, "então surgiu esta ideia de reabrir o caso de uma forma mais humana, porque a justiça, por necessidade, tem de ver as coisas a preto e branco, em termos de pura culpa criminal ou não", disse numa entrevista ao The New York Times. Os quatro episódios que compõem a série representam, portanto, uma abordagem ficcional que tem menos que ver com o lado sombrio de tudo isto do que com a matéria romântica de que são feitos Susan e Christopher Edwards. Por outras palavras: esta é sobretudo uma história de amor sob influência do cinema clássico de Hollywood... Sim, por difícil que pareça conjugar a realidade macabra com uma fantasia da era dourada.
Quando conhecemos Susan (Colman), no primeiro episódio, ela está a entrar numa loja de antiguidades francesa, e o dono apressa-se a dar-lhe a novidade da chegada de uma peça que ele sabe que será do seu máximo interesse: um poster original da segunda estreia na Bélgica de O Comboio Apitou Três Vezes (1952). Ficamos aí a saber que Gary Cooper é o seu ídolo, entre outros atores que venera numa espécie de altar composto por vários objetos raros e molduras com fotografias, de Kirk Douglas a John Wayne. Uma memorabilia que poderia ser inofensiva se não tivesse levado à ruína financeira do casal. Na série vê-se que a falta de dinheiro não deixa alternativas a um desesperado Christopher (David Thewlis), que, sem conseguir arranjar trabalho, decide pedir ajuda à madrasta, confessando, numa cabine telefónica, algo que aconteceu há muito tempo e "que não é o que parece" - claro que esta confidência levou à detenção de ambos.
Aqui, Sinclair e o realizador Will Sharpe começam a dar forma àquilo que torna a série tão apelativa, engenhosa e inteligente, para além de exemplarmente escrita. A saber, um labor cenográfico que em várias sequências faz transitar as personagens da realidade para a atmosfera de um romance hollywoodesco ou um western dos anos 1940, através de uma mistura de técnicas, filtros de lentes e ausência de barreiras entre os atores e a câmara. Trata-se de dar vida à imaginação de Susan, esta em perfeita sintonia com a de Christopher. Como notou Sinclair na referida entrevista ao The New York Times, Sharpe encontrou "uma linguagem visual para os elementos psicológicos e de saúde mental" que constituem cada episódio.
Landscapers é de tal maneira sobre o "refúgio" cinematográfico deste casal que todos os pormenores se sobrepõem à perspetiva mórbida do caso (sem a anular). Estamos a falar de um homem e de uma mulher que no primeiro encontro vão ao cinema ver O Último Metro (1980), de François Truffaut, com Catherine Deneuve e Gérard Depardieu, e mais tarde, quando o marido se sente triste com a morte do irmão, ela passa a escrever-lhe cartas, fingindo serem enviadas por Depardieu, para o animar. De resto, os filmes antigos são a paisagem aberta para uma mulher homicida que, como se vem a saber, também terá os seus contornos de vítima. E captar esta dimensão da psique da protagonista é elevar o nível de empatia de um género de narrativa que, numa abordagem mais convencional, guardaria a distância analítica.
Isto é true crime, com o devido processo de interrogatório a seguir diferentes trajetórias de verdade. Mas o que menos se preza nesse processo é a típica clareza lógica e desapaixonada. Os seres humanos são feitos de mundos interiores, e Susan, com o apoio incondicional de Christopher, projetou o seu na realidade para tentar escapar a uma violência inscrita nela. Olivia Colman, atriz que tem reinado tanto no cinema (A Favorita) como na televisão (The Crown), compreendeu muito bem a natureza fragmentada desta mulher de aparência humilde, e tem aqui mais um grande momento no pequeno ecrã.
Em jeito de garantia de um tom british, também não falta humor a Landscapers: na breve correspondência que Ed Sinclair estabeleceu com a própria reclusa Susan, através do seu advogado, ela concordou "que havia algumas coisas nesta história que eram difíceis de acreditar e francamente cómicas". Parte dessa piada é que o casal continua a manter a sua inocência. Digamos que é uma questão de perspetiva.
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